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A crônica do fim do mundo

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As verdades mudam. As mentiras também. No decorrer do tempo verdade e mentira misturam-se como as cores do arco-íris. E transformam-se num branco. Não há verdade absoluta. Ariquemes vinha andando nas asas dos sonhos. Era um vilarejo.

Damião Prandini não era médico. Nem sei o que foi na sua juventude. Ele e o José cuidavam de todos os deserdados da região que viviam encafifados nos garimpos clandestinos, na matança de gatos pintados, onças e equivalentes para venderem as peles. Belmira cuidava das hepatites e das mulheres com suas doenças íntimas. Era parteira de fama.

Damião, na escala hierárquica (dos sem-regras) era o príncipe dos “médicos curadores”, talvez tenha passado por alguma farmácia de interior ou por hospitais distantes, onde pôde pegar alguma prática e perda do medo de sangue. Eles que cuidavam destes povos do interior do Brasil – o Brasil superprofundo. Corria o ano de 1976. 

O José, até pouco tempo peregrinava pelo mesmo lugar. Andar inalterado e sempre de branco, corpo inteiro, talvez por alguma promessa. Homem discreto, de poucas palavras.  Dedicou-se aos matutos com suas endemias crônicas. Baços gigantes, olhos amarelados, indolentes nos movimentos – eram os portadores da malária de repetição. Ele não se vexava dos soros amarelos e azuis, sempre coloridos nos seus extremos, reforçados em coquetéis de vitaminas, que gotejavam lentamente.

Damião se vivo tiver, deve andar na casa dos oitenta anos. Era um homem bonito, luxento, cheiroso, cercado de miseráveis, só ele era nobre. Cabelos brancos, lisos, vestido num prontuário médico, um carro de luxo à porta, terra de chão poeirenta, nas chuvas, lamaçal extremo. O Dodge Dart, modelo de 1969, vermelho, lindo e maravilhoso patinava nos seus extremos.   Bebia uísque. Os outros bebiam pinga. Nem solteiro nem casado. Era um camarada namorador.   Mesmo sendo um charlatão, que hoje, poderia ser preso, eu ali, bem perto, seu vizinho, não o denunciei em nenhum momento. Ele tinha direito adquirido. Eu teria que esperar. E esperei.

Belmira, separada, mãe de 8 filhos, que sempre foi mãe e pai, tocava a vida na farmácia, e nos fundos tinha alguns leitos para internar seus doentes. Bem sabida, cheia de netos, desbocada, tipo “boca-suja”, mas, ainda, dava um bom caldo. Aqui e ali ficava caída por alguns PMs que eram destacados para vila, como que por punição. Sabe como é que é – ninguém é de ferro.   Onde o único médico (que era eu) perdia feio para os tradicionais tratadores das doenças da região. E me contentava em matar pium nos braços e testa.

Belmira não tinha nojo de paciente com hepatite. Ela me demonstrou isto. O paciente dela, cor de açafrão, engolia algumas colheradas de sopa e ela terminava a sobra no mesmo prato e colher. Comia e bebia. Beijava se fosse preciso. Nada de luva. Limpava vômito com a mão limpa. E ainda falava: – “tá vendo? Não pego doença nenhuma. Hepatite não pega em ninguém”.

Eu ali, desmilinguido, sentado à porta do meu barracão de madeira, que se chamou e ainda chama Hospital São Francisco.  Parecia mais um São Sebastião, longe de casa e flechado no peito, só com um diplominha sem fé nas mãos, que ninguém valorizava e com a clientela quase zero. Os outros sim, tinham o prestígio do tempo, vida na lida, e sabiam falar a língua do homem da floresta.

Cá, dentro de mim, pensei – vou-me embora. Consegui emprego no “Governo do Território” e fiquei. Fiquei esperando o povo chegar. O povo diferente de todo lugar. No barracão, quase nada de serviço. Tinha que me mostrar para tirar a cisma do povo.  Então, apareceu a mulher do André, a Maria, que a Belmira não conseguiu fazer o parto.  Feto com apresentação de ombro. Sem autoclave, sem estufa, mulher nas últimas, estrada de chão para Porto Velho, sem carro, sem ambulância, sem ônibus, falei – é a guerra. Vou operar. Botei a ferragem no formol, pano e tudo. E parti para o serviço.

Salvei a Maria e a filha Raiana que deve ter hoje 46 anos de idade. Depois deste ato fantasmagórico, passei a entender, que o Deus dos desvalidos, dos ignorantes, dos desgraçados, é muito mais generoso, pegou na minha mão e me guiou até hoje.

(blogdoconfucio)


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