Jobim é isso aí



O misterioso caso do doutor que só se desculpa quando faz a coisa certa

 

Neste 11 de agosto, um domingo, o múltiplo Nelson Jobim resolveu dar uma folga ao figurão do banco de investimentos BTG Pactual, incorporar o ex-ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e abrir espaço na agenda para conceder uma entrevista à CNN. As declarações sobre assuntos que o superexecutivo tem evitado há pelo menos dez anos pareceram mostrar que, aos 78 anos, o jurista estabanado que conheci nos anos 1990 agora percorre caminhos balizados pela lucidez. Em linguagem clara, cuidadoso na escolha das palavras, apoiado em argumentos robustos, ele criticou a intromissão do STF em territórios pertencentes a outros Poderes, recomendou a imediata conclusão de inquéritos já grisalhos, rasgou a fantasia que transforma a baderna do 8 de janeiro em tentativa de golpe de Estado e, entre outros recados sensatos, aconselhou Alexandre de Moraes a suspender intermináveis ofensivas fora da lei.

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Dois dias depois da entrevista à CNN, ainda tentava entender o que o fizera criar juízo quando descobri que também se transformara num homem de muita sorte: publicada pela Folha, a série de reportagens sobre abusos e maluquices ilegais protagonizadas por Moraes e seus discípulos atravessou a semana berrando que Jobim fizera a coisa certa. Então voltou ao palco o velho Jobim: no que deveria ser uma nota de esclarecimento, afirmou que não disse o que disse na entrevista, cobriu Moraes de elogios, garantiu que é correto defender a democracia com a revogação provisória do Estado de Direito e que não há nada de errado em proteger a Constituição tratando a protegida a socos e pontapés. Minha estranheza acabou. Jobim continua o mesmo.

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Em todas as muitas versões — deputado federal, redator de várias páginas da Constituição de 1988, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, ministro do STF indicado por FHC, presidente do Supremo e ministro da Defesa de Lula —, ele confirmou que podem dividir o mesmo corpo um incapaz e um capaz de tudo. Em 2003, por exemplo, um Jobim já de toga contou, com a naturalidade de quem está informando que prefere chimarrão a café, que havia infiltrado no texto constitucional dois artigos que nunca foram submetidos à votação no plenário. Três dias depois de transformar-se em delinquente confesso, ressalvou que não agira sozinho: atendera a um pedido do falecido Ulisses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte. Os dois artigos valem tanto quanto uma cédula de R$ 3. O autor da patifaria jamais revelou quais são.

Comparado ao ministro da Justiça do tucano FHC, o ministro da Defesa do petista Lula foi um monumento ao exibicionismo delirante. No fim de 2007, com uma farda de guerreiro da floresta no lugar do terno cinza-Brasília, Jobim invadiu Manaus. Se tivesse alguns anos e duas arrobas a menos, provavelmente estaria fantasiado de Tarzan. Teve de conformar-se com a imitação de Johnny Weissmuller no papel de Jim das Selvas, que interpretou no fim da carreira. Ao desembarcar na frente de combate, nosso Jobim das Selvas foi logo avisando: “A Amazônia tem dono!”. Depois de colocar em fuga uma brigada de saguis e reduzir uma sucuri de quartel a prisioneira de guerra, declarou-se vitorioso e voltou a entrincheirar-se no gabinete em Brasília.

Oito meses antes, o discurso de posse avisara que o novo ministro estava pronto para a mais feroz troca de chumbo grosso. Depois de evocar meia dúzia de episódios cujos protagonistas já tinham virado placa com nome de rua havia muito tempo, Jobim ornamentou o palavrório com uma frase de Benjamin Disraeli, primeiro-ministro do Império Britânico no século 19: “Never complain, never explain, never apologize”, caprichou o orador. Fez uma pausa e recitou a tradução para que Lula entendesse a estranha sopa de letras em inglês: “Nunca se queixe, nunca se explique, nunca se desculpe”. (É preciso reconhecer que, enquanto ocupou o cargo, não teve do que se queixar, não encontrou justificativas para o desempenho bisonho e, como sempre, não pediu desculpas a ninguém.)

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Tais anotações na folha corrida sugerem que, das duas, uma: ou Jobim nasceu desprovido do sentimento de culpa ou aprendeu a absolver-se de quaisquer pecados já nos trabalhos de parto

“Aja ou saia, faça ou vá embora!”, berrou em seguida o impetuoso gaúcho com mais de 100 quilos mal distribuídos por quase 2 metros de altura. Nos seis meses seguintes, não agiu nem saiu, não fez mas ficou — e ficou desperdiçando tempo e dinheiro em viagens internacionais inúteis ou performances delirantes em território nacional. Em junho de 2009, por exemplo, Jobim incorporou simultaneamente o almirante de esquadra e o brigadeiro do ar para comandar em Pernambuco a busca do avião da Air France que dois dias antes desaparecera quando voava sobre o Atlântico. Já na primeira discurseira tornou muito mais angustiante o sofrimento dos parentes dos passageiros.

“Estamos empenhados em buscar sobreviventes, ou melhor, restos”, começou a ampliação do pesadelo. “Temos de considerar que estamos trabalhando numa região costeira de Pernambuco, e vocês sabem que aqui há uma grande concentração de tubarões.” Trocou a farda pelo jaleco de médico legista e foi em frente: “Os corpos podem levar mais de dois dias para emergir. Os que não têm o abdome íntegro afundam e não voltam. Os outros, que têm o abdome íntegro, levam um tempo superior a dois dias para voltar à superfície”. Só esses seriam resgatados — se os tubarões permitissem. Em janeiro de 2010, de novo 48 horas depois, o colosso de insensibilidade reapareceu num Haiti devastado pelo terremoto decidido a, mais uma vez, aumentar o desespero dos desesperados.

“Evidente que neste momento a palavra ‘desaparecido’ funciona como um eufemismo”, avisou aos que sonhavam encontrar com vida os brasileiros desaparecidos desde o instante em que a terra tremeu. “Estamos procurando mortos. Estão todos soterrados.” Vários dias depois do parecer, esperançosos profissionais continuavam buscando sobreviventes sob montanhas de escombros. Jobim já deixara o Haiti quando o mundo se comoveu com o vídeo que documenta o resgate de duas crianças que resistiram a uma semana na sepultura. Não seriam encontradas com vida se dependesse do ministro da Defesa do Brasil. Ele teria ordenado a suspensão das buscas 48 horas depois do primeiro tremor de terra.

Tais anotações na folha corrida sugerem que, das duas, uma: ou Jobim nasceu desprovido do sentimento de culpa ou aprendeu a absolver-se de quaisquer pecados já nos trabalhos de parto. Ele não sabe o que é remorso. Alguém espera enxergar sinais de constrangimento pela rendição desonrosa aos donos do STF? Melhor esperar sentado, reiterou desde 1968 a reunião, realizada sempre em novembro, da turma que naquele ano se formou em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para festejar o fim do curso, os jovens bacharéis surrupiaram o sino de bronze, com 30 centímetros de altura e 10 quilos de peso, que anunciava o começo e o fim das aulas na faculdade. O objeto furtado continua em poder da “Ordem do Sino”, criada pelos participantes do assalto ao patrimônio público. Jobim é um deles.

O estatuto da confraria, redigido em 1978, transformou o sino em “símbolo da turma” e decidiu que mudaria de endereço a cada novembro. O novo guardião do troféu é escolhido durante o jantar festivo. “Não vamos devolver o sino até que haja apenas um sobrevivente da nossa turma”, avisou o advogado Paulo Wainberg, que o hospedou entre 2007 e 2008. “O roubo em si ficou em segundo plano”, disse à Folha, em dezembro de 2008, a advogada Maria Kramer. “É uma história de união, somos a única turma que se reúne todo ano.” A perpetuação do ato criminoso é endossada por Nelson Jobim, guardião do sino entre 1997 e 1998, quando vestia a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Enquanto posava de homem da lei no plenário, o produto do roubo descansava no armário.

O retorno desastrado confirma: Jobim é isso aí. Sempre foi. É tarde para deixar de ser.

(revistaoeste)



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