Pobreza e fome no Marajó desafiam Amazônia
Marluce Silva quase desistiu de continuar a sua missão ao chegar a Melgaço, ao Marajó, a maior ilha fluvial do mundo, no Pará, com 40 mil quilômetros quadrados, em março deste ano.
Era o primeiro dia da ação “Amigos de Jesus”, idealizada pela Igreja Católica através da sua prelazia no arquipélago, com o apoio da Secretaria de Saúde do Estado. O objetivo é atender a população – de 23 mil habitantes – do município, que tem o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil.
Uma criança grudou de imediato em Marluce e não a largou mais. “Ela puxava a minha roupa, me chamava e dizia que estava com a barriga doendo.. Eu perguntei se ela queria ir ao banheiro, se estava com dor de barriga, e ela dizia que não.
Quando perguntei o porquê que a barriga dela doía, ela disse que era porque estava com fome. Aquela criança tão esperta, virada, subiu atrás da gente, foi procurar comida para ela, porque ela sabia que ali em cima tinha comida. Isso era uma hora da tarde, ela não tinha comido nada”, relatou Marluce à repórter Tainá Cavalcante, do jornal Amazônia.
Se a criança cruzasse a baía na direção de Belém, poderia assistir a um festival de gastronomia regional, com a participação de chefes convidados, num centro de entretenimento adaptado – 18 anos atrás – para restaurantes do terminal portuário construído pelo empresário e aventureiro Percival Farquhar. No início do século XX.
A Amazônia era então a única fornecedora de borracha para o mundo e vivia a sua nunca esquecida belle époque e a capital paraense era a terceira mais importante do país, pelo volume das suas exportações. Hoje está na 9ª ou 10ª posição, embora o Pará seja o 4º Estado que mais exporta no Brasil e o 3º que tem mais saldo de divisas no comércio exterior brasileiro.
A cozinha paraense, com fortes vínculos com as suas origens indígenas e negras, se tornou tema de interesse e fator de atração em todos os lugares. Justifica-se, assim, que o governo estadual seja um dos patrocinadores da jornada gastronômica anual.
O que não se explica é seu imobilismo diante dos fatos gravíssimos revelados pelo bispo emérito do Marajó, dom Luiz Ascona, com base na operação da igreja. Melgaço voltou a ser tema de interesse já não pelo seu índice de pobreza extrema, mas por cinco casos de raiva humana confirmados oficialmente, mais 14 notificações, com a morte de uma criança de 10 anos, provavelmente tão faminta quanto o menino que catou comida com Marluce.
Os casos se concentram no rio Laguna, habitado por 15% dos habitantes do município, a área ainda mais pobre. Os voluntários atenderam 17 casos de hanseníase em dois dias, dois deles de pessoas reincidentes. O que daria uma incidência de 10 a 12% de toda população. A lepra, conforme a denominação anterior, expressão abolida para reduzir o seu impacto,, é uma típica doença da fome e da falta de higiene.
Mas como explicar que os habitantes do rio sofram, numa frequência alarmante, de dores agudas no ouvido e a cegueira ataque violentamente crianças e idosos, que estão perdendo a visão, sem falar em anemia e outras doenças carenciais?
Passada uma semana do de mais um clamor feito pelo bispo, que está na ilha há 33 anos, o silêncio geral é chocante. Talvez porque todos tenham se acostumado à pobreza do Marajó, provavelmente por onde chagaram os primeiros colonizadores da terra, milhares de anos atrás?
Antes, um estudo comprovou que em Portel, um município de muito maior peso do que Melgaço, do total de nove na ilha, com população de 500 mil habitantes, o índice de hanseníase era de 10 a 12%. A pesquisa foi realizada pela Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. O novo inquérito, sobre Melgaço, será agora de responsabilidade de uma instituição local. Terá melhor destino?
No ano passado, o Marajó começou a receber energia proveniente do Sistema Integrado Nacional, através de cabos subaquáticos que conectarem a ilha ao continente. Parece que as autoridades consideraram realizada a sua missão com esse investimento.
Talvez acreditem que basta fornecer energia firme para acontecer o progresso. O resultado, porém, poderá ser o inverso se o investimento não for além dos cabos lançados no fundo da baía e chegar ao ser humano. Ou se chegar agredindo o seu modo de vida e a sua cultura, como parecem indicar as denúncias do bispo sobre o tráfico de drogas e a prostituição, e os inventários médicos sobre pessoas que continuam alegres e hospitaleiras, apesar de muito doentes.
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal
Belém (PA)
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