“Transformar a literatura em propaganda política é horrível”, diz Graciliano Ramos
Numa missiva de 1935, para Oscar Mendes, o autor de “Vidas Secas” assinala: “Li umas novelas russas, modernas, e, francamente, não gostei”.
A “Cult” que está nas bancas contém ensaios primorosos sobre Graciliano Ramos, cujo romance “Vidas Secas” (reverbera inclusive no quadro “Os retirantes”, de Portinari, em “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto) – Tchékhov o colocaria, por certo, num pedestal – está completando 80 anos com corpinho de 20.
A longeva sobrevivência do livro, exalando vida pelas frases, narrativas e descrições, tem a ver com o fato de que o prosador de Alagoas fazia literatura e não panfleto político. O fato de pertencer ao Partido Comunista (PCB) não o levou a escrever propaganda. Jamais quis ser, digamos, o russo Mikhail Sholokhov.
Sua literatura mostra o Brasil profundo, denuncia-o, mas não é dogmática. Sua amostragem dos problemas do país é de uma precisão milimétrica — talvez até científica. O grau de refinamento é tanto que, frequentemente, pesquisadores acadêmicos descobrem novas nuances nos seus variados trabalhos.
Não deixa de ser curioso que o livro mais notável (tão doloroso quanto belo) sobre o confronto entre o governo de Getúlio Vargas — este, embora não aparentasse, era um político brutal — e os comunistas (sem esquecer os democratas) é “Memórias do Cárcere”, trabalho de um escritor, não de um historiador. A revista dedica o exemplar 239 ao escritor, com uma manchete de capa apropriada: “O imenso Graça — ‘Vidas Secas’, 80 anos”.
A publicação menciona na capa trecho de sua obra: “Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia”.
O dossiê, organizado pelo professor Benjamin Abdala Junior, uma estrela do gracialianismo — portanto, um graciólogo —, é primoroso. Faço apenas três reparos. Primeiro, Jean Pierre Chauvin e Rodrigo Jorge Ribeiro Neves mencionam o “regime estado-novista” em 1936, quando o Estado Novo começa em 1937. Mas é possível sugerir que o clima “estado-novista” era “filho” de 1935. Quer dizer, na prática, o Estado Novo nasceu antes de sua “decretação”.
Segundo, os ensaístas escrevem “catinga”, e não caatinga. Não sei se houve alguma mudança na forma de escrever a palavra. Terceira, anotam “sinha” Vitória, quando é “sinhá”. Tais probleminhas não empanam o brilhantismo do artigo.
O must do material é uma carta de Graciliano Ramos para Oscar Mendes. É de 1935. Encontrada pelos pesquisadores Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Scala, é inédita em livro.
Trata-se de uma das melhores cartas que já li. Merece ser lida e debatidas nos cursos de Letras.
Carta de Graciliano Ramos a Oscar Mendes, Maceió, 5 de abril de 1935
Recebi o número da Folha de Minas que trouxe o seu magnífico estudo sobre o meu S. Bernardo. Venho dar-lhe os agradecimentos e conversar um pouco, se isto não lhe desagrada.
Estamos longe do tempo em que os mais conceituados críticos nacionais eram uns sujeitos que ensinavam colocação de pronomes e sintaxe de regência. Ainda há uns idiotas que fazem crítica, infelizmente: o ano passado um deles descobriu que não sei conjugar verbos. Mas o certo é que, em geral, o Duque Estrada e outros semelhantes morreram.
A sua maneira de escrever me dá ideia de uma pua. Esta comparação é besta e muito repetida, mas agora não encontro outra: eu queria dizer que o senhor afasta com facilidade as letras miúdas, a madeira mole, que vira farelo, e chega num instante ao ponto duro onde o ferro enfia, ponto que fica muito abaixo das vistas ordinárias.
Estou de acordo com o senhor em várias das afirmações que faz no seu excelente artigo. Deixemos os elogios de parte: já lhe apresentei os agradecimentos. Acho, como o senhor, que transformar a literatura em cartaz, em instrumento de propaganda política, é horrível. Li umas novelas russas, modernas, e, francamente, não gostei.
O senhor deve ter visto uma enquete que se fez na Rússia o ano passado. Um dos quesitos era: “Qual a sua opinião a respeito da literatura soviética?”. Quase toda a gente respondeu que não conhecia a literatura soviética. E os que a conheciam amoitavam-se, usavam panos mornos. Romain Rolland, depois de rodeios, disse isto: “A arte é um ofício, uma técnica, e, como técnica, exige aprendizagem”.
A verdade é que muita gente se livra dessa dificuldade: o romance virou artigo de fundo e descambou em noticiário. Quanto a mim, penso como um dos meus personagens: “A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa”. Vejo com satisfação que Romain Rolland pensa também assim.
O senhor não quer nenhuma revolução. Eu desejo que as coisas mudem, embora me pareça que isto não me trará vantagem. Pergunto a mim mesmo que trabalho me dariam se o cataclismo que espero chegasse agora.
Não sendo operário, não poderia fabricar nenhum objeto decentemente. Faria um livro, com dificuldade, matutando, trocando palavras. Mas hoje existe o romance-cenário, que pretende ser uma espécie de literatura. Li um deles, russo, traduzido em francês, horrível. Junto a isso de nada serviriam as minhas letras, aprendidas no tempo em que a gente estudava Balzac.
Creio que a revolução social me levaria à fome e ao suicídio. Mas como, segundo o evangelho, nem só de literatura vive o homem, é razoável que se procure o bem-estar dos outros trabalhadores. Além disso, pode ser que o romance-artigo de fundo e o romance-noticiário sejam realmente, depois de aperfeiçoados, melhores que os antigos, extensos demais, pesadões. Quem sabe?
O que é certo é que não podemos honestamente apresentar cabras de eito, homens da bagaceira, discutindo reformas sociais. Em primeiro lugar, essa gente não se ocupa com semelhante assunto; depois os nossos escritores, burgueses, não poderiam penetrar a alma dos trabalhadores rurais.
Lins do Rego, que nasceu em engenho, apresentou alguns aspectos, mas ligeiramente. O que lhe interessa é o sofrimento do pequeno-burguês, decadente e cheio de fumaças, ignorante, vaidoso, inútil. Rachel de Queiroz tem algumas cenas de cadeia da roça, benfeitas, mas é possível que ali haja muita imaginação. Julgo que ninguém conhece bem a vida dos nossos matutos. Essas criaturas falam pouco diante de pessoas estranhas, são acanhadas. E não creio que existe nelas a consciência de classe a que Jorge Amado se refere. Vivi trinta anos em cidade pequena — não vi nada que se parecesse com revolta. Se ainda tentasse escrever um romance, provavelmente não me afastaria da gente mesquinha que há nos meus dois livros. É uma tristeza mexer com ela, mas não conheço outra. Suponho, porém, que não há perigo: não teremos reincidência.
Adeus. Considere-me um seu amigo e admirador.
Graciliano Ramos /Maceió, 5-4-1935 /Rua do Macena, 159
EULER DE FRANÇA BELÉM
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