Fabio Assunção: 'Vício não é uma questão de caráter' | Notícias Tudo Aqui!

Fabio Assunção: 'Vício não é uma questão de caráter'

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Um dos mais admirados profissionais da sua geração fala pela primeira vez sobre os episódios recentes que envolveram seu nome e, às vésperas de estrear em série como pai de uma dependente de crack, diz que é preciso debater as drogas

Rio — Nos últimos tempos, Fabio Assunção tem sido alvo de uma série de episódios desconfortáveis: memes que viralizam nas redes sociais; a divulgação de uma música, em fevereiro, fazendo piada com sua condição de dependente químico; e, em junho, o vazamento de um vídeo íntimo, antigo, em que o ator aparece alterado. Aos 48 anos, Fabio se manteve calado. Fez apenas declarações pontuais, como quando informou ter chegado a um acordo com a banda baiana La Fúria para que o valor arrecadado com a tal “música-piada” fosse destinado a organizações de prevenção e o apoio a usuários de drogas. 

Agora, pouco depois de finalizar as gravações da série “Onde está meu coração” (Globoplay), em que interpreta o pai de uma médica dependente de crack, o ator decidiu que era hora de falar. Fabio recebeu o GLOBO em seu apartamento, num condomínio em frente à praia da Barra, Zona Oeste do Rio. Lá, entre muitos livros e discos, o pai orgulhoso de João, 16 anos, que acaba de voltar de um curso de atuação em Los Angeles, e de Ella Felipa, 8 (“Não é incrível este desenho que ela fez da Frida Kahlo?”), fala abertamente sobre drogas, o modo como reagiu aos episódios recentes e sua trajetória de ator. Em 2020, ele festeja 30 anos de percurso. Leia toda a conversa a seguir:

Sempre busco uma profundidade nas almas das personagens que faço, entender quem são essas figuras. E, quando fui convidado, vi essa possibilidade. É uma série que discute a família. A dependência na família tem que ser debatida abertamente. Um dos grandes problemas da dependência é as pessoas terem vergonha de falar sobre ela, porque dificulta o processo de reequilíbrio. Além disso, tem 29 anos que faço televisão, o espaço da dramaturgia é um lugar que conheço bem, em que me sinto muito confortável para discutir qualquer tema.

E como o tema é tratado na série?  

A personagem da Letícia Colin é uma médica de 30 anos que usa drogas e esconde isso das pessoas com quem convive, ela vai para uma salinha do hospital fumar crack, por exemplo. O pai também é médico, bem na vida, mas no desespero tenta interná-la sem o seu consentimento. Qual é a dificuldade de entender que o vício faz parte dos buracos que a gente tem na alma? O vício não é uma questão de caráter, ou de escolha. Não é você aceitar uma propina. É impulsão, compulsividade. Não tem a ver com classe social. Não está ligado a pretos e pobres, de comunidades, que são absolutamente estigmatizados. A ilegalidade da droga é colocada como uma forma de você segregar toda uma população que é excluída do nosso sistema branco de consumo. A série vai trazer estas questões à tona. É uma hipocrisia a sociedade não falar sobre esse tema, uma vez que é uma sociedade que se medica o tempo todo, com produtos lícitos ou ilícitos.

Você tem pesquisado muito sobre drogas e dependência química. Motivado pela série, ou o interesse é anterior a ela, por sua própria condição?

Primeiro, tem uma questão de experiência pessoal, das coisas que passei. Através do meu processo de drogadição, conheci pessoas de todos os tipos, e fui formando meu ponto de vista. A quem interessa a ilegalidade das drogas? A quem interessa a internação compulsória? A muitos setores, menos ao usuário, ao dependente. Porque se fosse uma coisa conversada, aberta e exposta, uma questão de saúde — como de fato é — essa tensão seria diluída. Mas muitas instituições ganham com o fato de ser ilegal. Também me interessei pelo tema porque, a convite do Lula, integrei uma comissão, com psiquiatras e profissionais que trabalham com gestão pública de saúde. A ideia era ter uma política de drogas renovada, com novas ideias, novas perspectivas para o Brasil. Porque uma parte do mundo parece estar trabalhando para informar, entender melhor processos como o das drogas, depressão, pânico. E a sensação que tenho é que outra parte do mundo quer voltar para trás. 

Fabio, estamos falando aqui em quebrar estigmas, tratar a adição como uma questão de saúde, que afeta muitas famílias. Então acho importante nomear as coisas. Qual foi a droga que te causou dependência, cocaína? 

Sim. Já superei essa questão, isso não faz mais parte da minha vida, graças a Deus. Quando esse processo cessou, há quatro, cinco anos, achei que o álcool, aceito socialmente, poderia ser um caminho secundário, alternativo, para poder lidar com algumas coisas sem as consequências de uma droga pesada. Mas é preciso contextualizar isso. Herdei conceitos de que a droga tinha a ver com liberdade, com a subversão de um sistema castrador, era uma outra época.

E hoje, como você está? 

Hoje tenho uma vida absolutamente normal. Posso tomar uma taça de vinho? Posso. Dois copos de cerveja? Posso. Mas, se beber mais do que isso, vai me fazer mal. E sinto que preciso falar com as pessoas sobre isso. Porque sei o quanto o silêncio dificulta ainda mais o processo de evolução de qualquer pessoa, o quanto o silêncio afunda mais as pessoas nos seus medos e depressões. É o princípio do AA, a roda de partilha, onde as pessoas se igualam e partilham suas vivências. Para sair desse lugar de silêncio, de vergonha, e entrar em outro, de escuta, em que a sociedade tenha compreensão sobre esse tema.

“Não foi uma escolha. Não decidi ser uma voz sobre este assunto. Aconteceu naturalmente. Já que estão falando, vamos falar direito. ”

Em que momento decidiu que deveria tornar pública a sua dependência? E o que te levou a fazer isso? 

O que aconteceu comigo é muito particular, porque sempre trabalhei muito, em novelas, séries, produtos que estavam no ar. Quando as coisas começaram a ficar difíceis, eu estava naturalmente exposto, porque estava fazendo uma novela (“Negócio da China”, de 2008) . Comecei a perder peso, a ficar mal, tive os meus atrasos, teve dia em que faltei, isso começou a se tornar público, era inevitável. A primeira vez em que falei para mim mesmo “preciso ir a algum lugar para cuidar disso” tinha 29 anos, vim até um AA na Barra, escondido, sem falar com ninguém. Quando saí, tinha um paparazzo, ele fez uma foto minha, e saiu uma nota na imprensa: “Fabio Assunção foi no AA”. Não tive direito a um tratamento anônimo. Desde o primeiro passo que dei, já foi divulgado. E aí começa uma bola de neve, você entra num ciclo de estigma. Foi muito difícil não poder ter feito isso em silêncio. E começou a me dar a sensação de eu ter uma tarefa de falar sobre isso. Não foi uma escolha. Não decidi ser uma voz sobre este assunto. Aconteceu naturalmente. Já que estão falando, vamos falar direito.

Foi doloroso para você? 

Eu não tinha outro caminho a não ser buscar uma consciência sobre isso, me perdoar — no sentido de não vou pegar essa pilha, se tem alguém me julgando, que julgue, mas não vou me julgar, vou trabalhar para que me traga coisas boas. Não é capitalizar em cima disso. É aprender. Meu filho tem 16 anos. Eu converso abertamente com ele desde os 13, 14 anos. Minha filha tem 8, é muito cedo para ter essa conversa com ela.

Você esteve no início do ano com o os índios do povo Shanenawa, no Acre. Foi em busca de alguma cura? 

Não, não foi nada específico. Já tinha experimentado ayahuasca, já tinha ido ao Daime. Não tenho religião, mas já fui a centro de umbanda, ao candomblé, fui ao João de Deus três vezes, estive com Chico Xavier. Fui várias vezes a centros espíritas, mas também a centros budistas tibetanos, fiz meditação transcendental. Isso desde a minha adolescência. Não fui buscar a cura de algo específico. A experiência que tive com os índios foi uma busca de autoconhecimento, através de um processo de investigação da inconsciência. Estou nessa busca também de me investigar, de me provocar. Sou muito inquieto, estou sempre pensando e repensando a vida, procurando minha evolução. Tento reconhecer acertos e erros, todo o processo humano.

“É claro que teve uso indevido de imagem, difamação, um monte de coisa que poderia entrar num processo (contra a banda La Fúria), mas o que isso iria transformar? Só ia criar mais muros, divergência e ódio.”

Há cerca de dois meses teu filho publicou um post em tua defesa após o vazamento de um vídeo íntimo na internet. Como você se sentiu? 

Quando teve aquele episódio em Arcoverde (em junho de 2017 o ator foi preso por desacato numa festa de São João, no interior de Pernambuco)... não vou me vitimizar, mas foi uma grande agressão que sofri ali, uma coisa absolutamente desnecessária. Eu poderia estar aqui falando que foi horrível, mas foi maravilhoso, e vou te explicar por quê: aquilo abriu uma porta com meu filho, de ele trazer o assunto. “Pai, o que foi que aconteceu?” Ali eu contei, a gente começou a conversar.... Então ele tem muita consciência, uma compreensão muito grande para um cara de 16 anos. Ele escreveu sozinho, não perguntou pra mim, e postou. Se alguma coisa disso tudo tem que valer a pena é ( o fato de ) reverter em conhecimento e respeito, consciência humana aos meus filhos. Porque a gente herdou também muitos conceitos errados, muitas coisas. E, para que a sociedade se transforme, a gente tem que ter essa conversa com os filhos. Tenho certeza de que meu filho não vai julgar uma pessoa, seja qual for o assunto. Ele vai sempre avaliar todos os lados. E, no devido momento, vou trabalhar para que a minha filha tenha uma mente assertiva em relação a isso, bons pensamentos. Isso é transformar a sociedade, educar seus filhos. A educação te dá liberdade.

Você foi personagem de vários memes, e citado numa música, da banda baiana La Fúria, que associava teu nome a “ficar loucão”. A sua reação neste episódio provocou uma rede de apoio e admiração nas redes sociais. Como você recebeu isso?

Quando rolaram os memes, conversei com meu filho, e ele falou assim: “Isso é zoeira, não liga não. Os caras fazem isso com todo mundo, são divertidos.” Então tudo bem, beleza. No episódio da música, ele falou: “Disso aqui eu não gostei, achei maldade”. Aí vi o clipe. Realmente, glamourizar a bebida numa festa de jovens, todo mundo dançando muito louco, pensei: que erro de pensamento, isso não é legal. Aí decidi falar com a banda, ir pro diálogo. É claro que teve uso indevido de imagem, difamação, um monte de coisa que poderia entrar num processo, mas o que isso iria transformar? A banda ia continuar não entendendo o que estava fazendo, com as pessoas curtindo a música mais ainda. Só ia criar mais muros, divergência e ódio. Aí fiz uma videoconferência com eles, falei o que achava da música, citei as estatísticas, tudo o que está acontecendo no mundo. Foi uma conversa objetiva. É uma galera de 19, 20 anos, não sabiam o que estavam fazendo. Esta é a nossa formação, a formação do Brasil. A gente mata índio, as pessoas querem andar armadas, então qual é a ofensa? Eles me perguntaram o que eu queria fazer, e eu disse que queria reverter a renda da música para organizações que lidam com dependência. Até o fim do mês vamos ter o fechamento do semestre, e aí vamos divulgar o valor, vai ser dividido entre duas instituições: uma organização de São Paulo — É de Lei — e outra da Bahia, dirigida pelo Dudu Ribeiro — Iniciativa Negra por uma Nova Política para as Drogas (INNPD) —, que cuidam de prevenção, orientação e redução de danos. Resolvemos tudo em 20 minutos. Eles postaram o vídeo, contando. Postei também (a publicação de Fabio teve quase 70 mil comentários) . O mais importante disso é que todo mundo meio que se ligou. Não vou tirar onda com o câncer de uma pessoa, com a compulsão de uma pessoa. Isso não é engraçado.

Como você se sente hoje? 

Estou sempre trabalhando para que as coisas fiquem bem. Trabalho muito. É onde eu me realizo. Viajar é bom, conhecer novos lugares. Mas dia de folga eu não gosto. Porque você não fica nem lá nem cá. Agora terminamos a temporada da peça “Dogville” , já emendei na série. E já tenho dois projetos para o início do ano: vou fazer a série “Fim”, adaptada do livro da Fernanda Torres , com direção do Andrucha Waddington, para a Globo, e em seguida uma produção independente sobre o Doca Street (playboy que matou a namorada, a socialite Ângela Diniz, em 1976, em Búzios, num caso de grande repercussão) . O Bruno Barreto vai dirigir, temos esse projeto desde 2011. E, agora, a Globo me convidou para fazer assistência de direção (iniciada na semana passada) , na próxima novela das 21h, “Amor de mãe”, de Manuela Dias, com direção artística de José Luiz Villamarim.

Você já dirigiu teatro. Pensa em mudar de lado, ou conciliar as duas funções? 

Estou aberto. As duas experiências que tive na direção de teatro (“O Expresso do Pôr do Sol”, em 2012, e “Dias de vinho e rosas”, em 2015) , foram muito boas. O tempo dos ensaios era um tempo nosso, 40 dias, foi profundo. Não sei como vai ser na televisão, e o tempo na TV é um elemento que muitas vezes joga contra. Estou abrindo uma porta, não sei se começando um novo caminho ou só vivendo uma experiência. Teatro é algo que vou continuar fazendo, quando realmente tiver uma obra que ecoe em mim.

Sua estreia na Globo se deu aos 19 anos, e logo foi alçado à condição de galã. Nos últimos anos, tem feito papéis mais densos, como o Ramiro de “Onde nascem os fortes”. Como foi essa passagem? 

Isso que você chama de passagem na verdade é uma libertação. O galã romântico é algo muito limitador. Quando você vai para o conteúdo, para a alma de uma personagem, você sai da questão estética. O que é o belo? Uma questão subjetiva. Prender-se ao conceito de belo é restringir o teu potencial artístico a uma aprovação externa, quando na verdade as personagens falam por si. O Ramiro, por exemplo de “Onde nascem os fortes” , falava por ele. É uma figura desalmada, um sujeito seco, um assassino. Mas a passagem foi natural. Os personagens foram aparecendo. O que fiz agora em “Onde está meu coração” é superforte, hiperemotivo, um cara que luta pela harmonia da família dele. O Chuck, de “Dogville”, também era incrível, rústico e pesado. Tenho feito personagens bem profundos.

Você outro dia postou fotos em Brumadinho. O que fez lá? 

Fui participar de uma ação social , como voluntário. Existe um coletivo lá que chama Amigos de Brumadinho. Se você puder pôr o arroba deles... (aí vai: @amigosdebrumadinho) . Porque, quando tem um acidente, vira uma comoção. Nunca posto isso, para não parecer autopromoção. Mas dessa vez coloquei na minha rede social porque vi que saiu da pauta dos assuntos. Há um trabalho a ser feito ainda lá, e a gente não pode ficar se esquecendo das coisas. Já fiz muito em silêncio, de doação. Doação não é algo que você dá para alguém. Você está dando para o mundo. Não tenho dúvida sobre isso. E aí volta para você de várias formas, como recebi a emoção de uma menina cujo sonho era ter o pai de volta.

E o seu sonho, qual é?

Penso muito no presente. Não tenho sonhos meus. Tenho talvez algumas metas. Formar os meus filhos é uma meta. Vou ficar feliz quando os dois estiverem encaminhados. Tem uma longa estrada. Mas também tenho que saber qual é o sonho deles. Vivo hoje.

Fonte: Oglobo


 


 


 
 

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