Romance de força extraordinária, vencedor do Jabuti narra morte de menina de oito anos
'O Pai da Menina Morta' compartilha com os 'Twin Peaks' e os Tarantinos citados uma aporia de borrar a fronteira entre vida e arte
Tudo está, para qualquer arte, no hiato entre a experiência e a figuração, a vida e a linguagem (se é que ainda podemos, nas vésperas da terceira década do século 21, separar vida e linguagem a sério).
Um mistério de duas pistas —na ida, na mão do criador, inventar o caminho entre a dor e o fingimento; na volta, no olho do leitor, reviver esse caminho. Sem esquecer, como explicou Fernando Pessoa, que na dor lida a gente lê não a dor fingida, aquela que nasceu da realidade, mas uma nova dor, nascida da refrega entre o caminho inventado pelo poeta e o vazio criado na interioridade do leitor pela linguagem.
Mistério complexo, que revive a cada grande obra de arte. É o caso de “O Pai da Menina Morta”, vencedor do prêmio São Paulo de literatura e do Jabuti neste ano.
Um romance de extraordinária força, criado sobre matéria propícia à mera melancolia —um pai narra, para conjurar e esconjurar, a morte de sua filha de oito anos, em capítulos de tamanho desigual, em geral curtos, tramados segundo uma lógica de grande força, a saber, alternar constante mas irregularmente entre primeira e terceira pessoa, entre vários tempos do passado e um ponto parado no tempo, aliás dois, aquele da morte e este do presente narrativo; entre relatar minúcias emocionais e olhar-se de fora, entre sonhar e viver, sempre com enumerações virtuosas para os fins do relato, que conta ainda com a ironia triste dos títulos das seções.
Isso e mais isto: discretos mas eficientes loopings, com alguns subenredos que agregam valor ao conjunto (o casamento desfeito, a infância do narrador, o namoro com a professora de ioga) por oferecerem trilhas seguras ao leitor, que afinal quer que a vida relatada passe, de algum modo, para que ele saia daquele lugar insuportável que é a morte e sua força gravitacional.
Um ou outro momento baixam essa excelente tensão narrativa: é quando o conjunto sugere certo ar de cosmopolitismo blasé, em que Paris ou Piracicaba alternam indistintamente, como se fosse nenhuma a diferença entre as duas. Mas também aí há ganho para a narrativa, porque esse mesmo ar permite ao narrador por-se em justa comparação com gigantes: Eric Clapton, Drummond, Gilberto Gil, Kafka, pais que também enterraram seus filhos.
E há o final, o vômito das derradeiras páginas, que engolfam narrador e narrado, leitor e personagem, numa voragem triste, mas (mais um mérito) sem autopiedade nem pose pós-moderna.
É certo que o livro compartilha com os “Twin Peaks” e os Tarantinos citados essa aporia de borrar a fronteira entre vida e arte, representação e análise, tudo parecendo indiferente e rebaixado; mas Tiago Ferro, à diferença deles, organizou um relato em torno de um centro de gravidade efetivo, por assim dizer real, que independentemente de haver sido vivido se impõe como sentimento humano e como experiência estética.
Fonte: Folha de S. Paulo
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