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Futebol das mulheres, com mulheres, para mulheres

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O Brasil vê (finalmente!) nascer uma cultura feminina do futebol, alimentada pela insistência de muitas em não aceitar o papel de figuras exóticas do esporte

 

Poucas coisas podem ser ditas sobre o Brasil de 2019 com tanta certeza quanto isto: nunca antes na história assistimos tanto, torcemos tanto e falamos tanto sobre futebol jogado por mulheres. Com campeonatos organizados, com nova comissão técnica na seleção e projeto para as categorias de base, com jogos na TV e recordes de audiência, o Brasil está na cara do gol para o futebol feminino chegar ao seu melhor momento.

Esse fenômeno vai muito além dos estádios. O R7 esteve na maior feira nacional do esporte, a Brasil Expo Futebol, em projetos que criam espaços para mulheres jogarem futebol, em jogos amadores e nas arquibancadas para observar como a presença feminina no mundo da bola extrapola o campo.

O que encontramos foram mulheres tão otimistas quanto atentas para as ainda profundas e persistentes diferenças entre gêneros no futebol. E mais do que isso: comprometidas com construir dia a dia uma nova cultura para o futebol, em que as mulheres são protagonistas.

Como disse a norte-americana Megan Rapinoe, ao receber o prêmio de melhor jogadora do mundo da Fifa deste ano, “alguns estão atrasados para esta festa”.
Mas não é o caso de muitas — e cada vez mais — mulheres brasileiras:

As mulheres que aparecem neste vídeo são apenas uma parte de um movimento mais amplo que reflete, ao mesmo tempo, mudanças no esporte futebol e na sociedade em que ele é jogado.

“É muito difícil pensar o esporte sem pensar no que é externo a ele”, diz Leda Costa, professora visitante da Faculdade de Comunicação da UERJ e pesquisadora do futebol.

As mulheres não tiveram dificuldades para estar no futebol pelo futebol em si, mas por causa da sociedade machista que não permitia que elas estivessem ali.

Historicamente, essa sociedade machista não apenas proibiu o jogo para as mulheres por quase quatro décadas [veja no quadro abaixo], como relegou às poucas (até alguns anos atrás) mulheres do futebol o papel de “seres exóticos”: elas foram atração de circo, participaram de partidas de vedetes, personagens de reportagens que mostravam que mulheres sabem chutar uma bola e — vejam só! — até usam batom.

A marcação do campo de futebol como algo masculino vai se apagando no mesmo processo de luta das mulheres por igualdade na sociedade.

“A partir do momento em que as mulheres podem agenciar e construir a sua identidade, várias atividades que antes eram consideradas impróprias para elas passam a ser importantes para demarcar esta ideia de que ‘eu posso estar aqui’, inclusive jogando futebol”, comenta Leda.

Desde que o futebol chegou ao Brasil, as mulheres jogaram bola. Há registros de equipes mistas no início do século 20. Times femininos também existiam, embora muitos fossem apresentados como entretenimento e até atração de circo.

Com a prática se disseminando e causando incômodo aos conservadores da época, um decreto de 1941 proibiu as mulheres de praticarem esportes “não adequados à sua natureza”.

Mas nem todas ficaram sabendo disso e times amadores continuaram se organizando. O mineiro Araguari Futebol Clube chegou a fazer partidas em estádios cheios. Por outro lado, a proibição reforçou a divisão do futebol por gênero: enquanto os homens se profissionalizavam, as mulheres seguiam sendo atração, como  em um jogo beneficiente entre vedetes no Pacaembu, em 1959.

Em 1965, a ditadura militar incluiu nominalmente o futebol entre os esportes proibidos para as mulheres. Mesmo assim, campeonatos amadores já aconteciam na década de 70, especialmente nas praias do Rio de Janeiro.

A proibição de mulheres no futebol termina em 1979. Por pressão dos times amadores organizados, a CBF regulamenta a modalidade em 1983.

Nos anos 1990, as Copas do Mundo e as Olimpíadas levam a CBF a montar uma seleção permanente, mas a modalidade continua amadora no Brasil. Mesmo assim, surge a primeira estrela: Sissi.

Uma geração de jogadoras se forma superando a ausência de projeto e profissionalização. O Brasil ganha dois ouros pan-americanos, duas pratas olímpicas, o vice-campeonato mundial em 2007 e seis vezes o título de melhor jogadora do mundo com Marta.

A partir de 2017, Conmebol e CBF exigem que os clubes brasileiros estruturem departamentos de futebol feminino. Os campeonatos regionais e o nacional ganham projeção. É a vez das mulheres ocuparem todos os espaços do campo

Encarando a retranca da história

Luana Tavares, Nayara Perone e Natália Lara — três das personagens do nosso vídeo — são mulheres comprometidas de diferentes maneiras com a construção da cultura feminina do futebol.

A administradora que joga futebol na várzea de São Paulo, a designer que criou um projeto para incentivar mulheres a jogar e a jornalista que virou uma das primeiras narradoras esportivas do país têm, ainda, outro traço em comum: mais ou menos a mesma idade do futebol feminino oficial do Brasil.

A trajetória delas ao longo das últimas três décadas reflete muito da maneira como as brasileiras foram ocupando as quadras, terrões, campos e estádios nesses anos de futebol feminino “legalizado”.

“Eu gosto de futebol. Assisto. Comento o tempo todo. Desde que me conheço por gente. Mas jogar era muito difícil”, conta Nayara. “Só fui jogar com meninas quando eu já tinha 25 anos. Isso acontece com muita mulher.”

De acordo com dados de 2015 do Ministério dos Esportes, meninos começam a praticar esportes aos 5 anos e as meninas, aos 11. A porcentagem de mulheres praticando qualquer esporte é sempre menor que a dos homens e aumenta conforme a idade, confirmando que elas só superam as dificuldades para praticar atividades físicas conforme ficam mais velhas.

“São as microviolências do dia a dia que te afastam do que tu quer fazer”, diz Nayara. “Tem preconceito, tem homofobia, tem o machismo, tem uma série de coisas que se espera de uma mulher que supostamente não condizem com a prática do futebol.”

Tem o pai que diz ‘não deixo jogar porque vai virar sapatão’. Mas algum pai vai se opor a sua filha ser a camisa 10 da seleção?

Nayara Perrone, fundadora do JogaMiga

E ela não fala apenas por experiência própria, mas também pelas histórias acumuladas ao longo dos quatro anos do projeto JogaMiga. A iniciativa cria espaços para mulheres treinarem e jogarem bola, muitas vezes pela primeira vez.

Na mesma pesquisa de 2015, o futebol aparece como esporte mais praticado por 66% dos homens. Entre as mulheres, a proporção é de 19%, número muito próximo do esporte historicamente mais associado ao sexo feminino no Brasil, o vôlei, praticado por 22% das mulheres.

Luana sempre fez parte dessa estatística. Mas sabe que, antes, ela não era a regra. A administradora de empresas reforça o artigo no singular ao contar sobre sua relação com o futebol:

Eu era 'A menina que joga bola'.

Luana Tavares, jogadora do Rir Ver Play

Quando conta como passou com a bola sobre a barreira nos anos 90, Luana ressalta, justamente, que não vivia num “mundinho feminino”.

“Eu fui criada no meio de homens: primos, irmãos e molecada na rua. Quando a gente voltava da escola, todo mundo ia pro campinho jogar.”

Na escola, ela fugia da bola de vôlei dada às meninas para se juntar aos meninos no futebol. E lembra que, além de precisar procurar meninos para jogar, também precisava parecer um.

“Como torcedora, eu ia ao estádio vestida de homem. Na hora de jogar também. Eu não jogava de short justo e camisa grudada. Eu usava roupa como a dos meninos.”

De tanto se meter no jogo, Luana chegou a tentar se profissionalizar. Embora tenha desistido da carreira de atleta e convivido com olhares tortos, ela nunca deixou de jogar e chegou a ganhar bolsa para ser parte do time feminino da faculdade.

Hoje, meninos e homens só veem Luana jogar no Rir Ver Play, um time amador formado apenas por mulheres e que, no mesmo espírito do JogaMiga da Nayara, abre uma quadra na zona norte de São Paulo todas as quartas-feiras para que novatas também possam se apropriar do esporte.

A Natália, por sua vez, resolveu enfrentar uma retranca masculina ainda maior. Quando chegou à faculdade, enquanto as mulheres iam tomando mais espaços no campo: a narração esportiva.

Consumidora ávida da cobertura esportiva, ela sempre escutou vozes masculinas no rádio e na TV. Mas, como muitas das pioneiras que fizeram o futebol virar feminino, ela se perguntou “por que não eu?”. E se dedicou a estudar narração.

Neste que já é um ano marcante ano para o futebol feminino, Natália narrou um grande número dos jogos transmitidos pela internet e pela TV. No início de outubro, estreou no serviço de streaming esportivo DAZN. E sua primeira grande cobertura foi o quê? A Copa Libertadores da América feminina.

A ambição é ser narradora de todos os esportes, mas ela não nega: no fundo, sabia que queria contribuir com o futebol feminino.

Poucas pessoas acompanharam a história do futebol feminino, porque pouca gente dava visibilidade.

Natalia Lara, narradora esportiva

“O futebol feminino sempre teve um brilho diferente pra mim. Poxa! Eu cresci com a Marta e a Formiga jogando! Quando eu via, brilhava o olho. Mas a gente quase não via, né?”

O verbo usado no passado diz muito sobre o que ela e outras mulheres que apostaram nas carreiras de narração e jornalismo esportivos estão fazendo para criar uma ponte entre os avanços em campo com o público que, para crescer, precisa ter acesso ao que acontece nos jogos.

Mais mulheres jogando, mais jogos, mais público, mais mulheres jogando...

Mais mulheres jogando, mais jogos, mais público, mais mulheres jogando...

Os números animadores do futebol profissional de mulheres no Brasil são resultado das mudanças que Luana, Nayara e Natália viveram.

A apropriação do esporte pelas mulheres exigiu que as entidades, começando pela Fifa, tomassem uma atitude que, em efeito cascata, chegou até os clubes. Essas ações tendem a provocar ainda mais mudanças na maneira como o esporte se organiza.

A entrada de profissionais mulheres nas funções extra-campo é um exemplo disso. Flávia Cristina é profissional de recursos humanos, mas decidiu trocar o pagamento de guias do INSS pela administração de times de futebol. A troca, segundo ela, não é fácil.

Cursos, palestras, pós-graduação, tudo isso ainda é muito caro para a maioria das mulheres que querem trabalhar com gestão do futebol, justamente porque o mercado ainda não criou cargos suficientes na área para elas ocuparem. Ou seja, muitas ainda vivem no amadorismo.

No curso de gestores da CBF, no qual Flávia está inscrita, em uma turma de 70 pessoas, só oito são mulheres. “Mas eu estou sentindo uma boa diferença da Copa pra cá”, diz a otimista futura gestora. “Tem mais mulheres falando de futebol. Tem mais pessoas buscando, tem mais cursos aparecendo.”

Outro exemplo: a troca de produtos nas vitrines das lojas e de personagens na publicidade.

Mônica Esperidião, especialista em marketing esportivo e fundadora da empresa Women Experience Sports, diz que tanto anunciantes como a indústria de material esportivo estão atentos. 

A estratégia muda porque as mulheres começam a consumir futebol, produtos, marcas e participar mais do jogo com outro papel que não só de espectadora secundária.

Mônica Espiridião, especialista em marketing esportivo

Os efeitos mercadológicos são claros. Só a fabricante de material esportivo da seleção brasileira viu as suas vendas de camisas de times femininos aumentarem 200% entre a Copa de 2015 e a de 2019.

Esta mudança na relação do público com o futebol profissional de mulheres é um ponto-chave para se estar otimista.

Como lembra a pesquisadora Leda Costa, a relação da massa de brasileiros com o futebol é bem específica: “É com o esporte profissional, espetacularizado e da série A.”

Então, quando é possível ver mais mulheres jogando profissionalmente, tanto se forma público, quanto se criam incentivos para a prática. “Representatividade importa, sim”, reforça Leda.

Campo meio cheio ou meio vazio?

Significativamente, na entrada da última edição da maior feira dedicada ao futebol profissional do país, a Brasil Expo Futebol, o estande da CBF estava dividido ao meio: de um lado, Daniel Alves levantando a recém-conquistada taça da Copa América; do outro, uma foto imensa de Marta.

Pelos corredores da feira, era possível ver muitas mulheres com crachás de empresas e clubes. De acordo com a organização, 32% dos inscritos nas palestras e cursos eram mulheres.

 

No entanto, os estandes ainda não tinham — por exemplo — manequins femininos. Em muitos, a presença de mulheres se restringia às modelos contratadas para receber os visitantes.

Nada disso passou despercebido ao olhar de um grupo de amigas adolescentes que acompanhavam o time masculino de futebol da escola nos campeonatos de exibição da feira.

“Se você gosta de futebol, chega num lugar, mas só vê homem, parece que tá deslocada. Eu me sinto assim no estádio, me sinto assim quando chego numa quadra e só tem menino jogando: Será que eu tô no lugar certo?”, diz Gabriella Cortez, 17.

Se a estudante viu o campo meio vazio, a ex-jogadora Renata Lopes preferiu enxergá-lo meio cheio.

Uma das muitas mulheres que, nos anos 90, bateu na trave ao tentar se profissionalizar, Renata estudou educação física e, na feira, como gestora do Sesi-SP, acompanhava equipes de futsal que se apresentavam nos torneios de exibição.

Em meio a algumas dezenas de garotos, quatro meninas participavam das equipes do Sesi-SP. “São poucas meninas? São. Mas é uma mudança muito significativa de cultura. Há 25 anos, eu não faria o que elas fizeram aqui”, avalia. “Acredito que as meninas se permitirem jogar hoje tem muito a ver com o que a minha geração e a anterior desbravaram nesses últimos 30 anos.”

Renata tem muita certeza sobre a estratégia correta de jogo para o futebol de mulheres quebrar mais barreiras: é preciso que aquelas que já viveram ou vivem do esporte ocupem espaços de destaque, tenham poder de decisão e ajudem a desenhar políticas públicas.

“A grande virada é ter jogadoras e ex-jogadoras se politizando e ‘culturalizando’ o futebol.”

Renata Lopes

Para sorte de quem está chegando agora e vai poder jogar neste terceiro tempo do futebol brasileiro conquistado pelas mulheres, esse é um projeto em pleno desenvolvimento.

“É um rolo compressor, com todas as mulheres se juntando. Descobrindo que a gente tem que estar juntas, trabalhar juntas”, resume a narradora Natália Lara.

Depois de tantos anos, a mulheres ainda não estão “correndo pro abraço”. Elas estão jogando sabendo que é preciso primeiro se abraçar para, daí sim, correr pra galera.

Fonte: R7


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