LEITURA / Quer entender a Era Bolsonaro?
“Quer tentar entender Bolsonaro? Corra para a livraria, recomenda o jornalista Thomas Traumann”. A provocção saiu no site Poder 360. O autor faz uma seleção de livros que ajudariam a compreender Jair Bolsonaro. Embora o presidente seja “uma obra em andamento”, os livros apontados ajudariam a entendê-lo, segundo Traumann.
A listagem é extremamente útil, especialmente diante da postura de abandonar a reflexão profunda e sistemática pelas interjeições e exclamações via internet. Fiz algumas observações em itálico, entre colchetes.
De todas as variáveis sobre os riscos políticos do governo Jair Bolsonaro, nenhuma é maior do que o próprio presidente. É fácil tentar demarcar o 1º ano de Bolsonaro pelo voluntarismo e a imprevisibilidade, um misto dos ex-presidentes Jânio Quadros com João Figueiredo, mas o personagem é muito mais complexo.
Bolsonaro personifica um movimento conservador autêntico na sociedade com raízes no movimento anticorrupção dos tenentistas de 1922 e que abarca hoje uma ampla aliança que vai dos eleitores evangélicos à elite financeira, do agrobusiness aos quartéis do Exércitos e das PMs.
Bolsonaro é uma obra em andamento, mas, para entendê-lo um pouco mais, vale ler os seguintes livros:
Em Castello, a Marcha para a Ditadura (editora Companhia de Letras), o jornalista Lira Neto reconta a trajetória do general Humberto Castello Branco, do bullying escolar pelo físico atarracado (era chamado de Quasímodo) ao fracasso do início da campanha brasileira na Itália na 2ª Guerra Mundial, revertido em sucesso com sua estratégia para a tomada de Monte Castelo.
Chefe do Estado Maior do Exército do governo João Goulart, foi um dos articuladores da deposição do presidente. Admirador do governador Carlos Lacerda, Castello era capaz de se reunir com o ex-presidente Jânio Quadros (em janeiro de 1964) e pedir o voto do senador Juscelino Kubitschek para ser eleito presidente pela via indireta. Em 2 meses como presidente, Castello havia se afastado de Lacerda e cassado os direitos políticos tanto de Jânio quanto de JK.
Docemente constrangido, o general aceitou que o seu mandato de 1 ano fosse prorrogado para 2 anos, ampliou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal [para ter o controle da corte, com integrantes que tinham princípios], extinguiu os partidos políticos, multiplicou as possibilidades de cassação e acabou com as eleições diretas para governadores e presidente.
O livro de Lira Neto é rico para entender como um governante sem base se torna refém de seu apoio mais radical. Quando a linha dura já preparava o bote, o então ministro da Justiça, Juracy Magalhães, tentava explicar a sua tentativa de fazer o Congresso aprovar por bem as medidas autoritárias: “Não se está dizendo ao Congresso, se você fizer isso eu te quebro a cara. O que se está dizendo é se você não fizer, eles nos quebram a cara”. Castello terminou seu mandato com um fantoche do ministro da Guerra e sucessor, Costa e Silva [acho imprópria a expressão, embora o desfecho desse conflito tenha aberto caminho para a ditadura desabrida].
Os Engenheiros do Caos (editora Vestígio), do cientista político italiano Giulano Da Empoli, poderia ser lido como uma distopia. Relata como marqueteiros com uma aguda visão da tecnologia se uniram a políticos populistas para virar de cabeça para baixo o conceito da democracia ocidental. Pois é, não é distopia. Empoli fala do surgimento e auge do partido Cinco Estrelas, o blog de um humorista que se tornou a legenda mais votada na Itália, passa pelo indefectível Steve Bannon e o marketing de Donald Trump e chega ao novo estágio do presidente húngaro, Viktor Órban, e seu partido “Deus, Pátria e Família”. Nenhuma semelhança nesse livro com a política bolsonarista é coincidência.
Empoli mostra em seu livro como o discurso do antissistema – que Bolsonaro traduziu como Nova Política– é um método em si. “Aqueles que declaram que a chama populista durará pouco –pois uma vez no poder, as forças que a encarnam não conseguirão manter suas promessas– estão nadando em plena ilusão.
A promessa central da renovação dos populistas é a humilhação dos poderosos (aqui entendidos como os políticos tradicionais, o politicamente correto, a mídia, as universidades). Essa promessa já está cumprida no momento em que eles ascenderam ao poder”, escreve Empoli.
A inexperiência em gestão passa a ser uma virtude (pois comprova que o candidato não faz parte do sistema apodrecido), os ataques grosseiros aos adversários passam a ser visto como “autenticidade”, as negociações com o Congresso são substituídas por intimidação via trolls e matilhas digitais e o descrédito da mídia é uma ação sistemática para confundir a fronteira entre meias verdades e mentiras completas. É um jogo com novas regras, ou nas palavras do marqueteiro italiano Giaroberto Casaleggio, “a política não me interessa. O que me interessa é a opinião pública”. [Sugiro, como complemento introdutório, Ideologia e Utopia, de Karl Manheim, e A Política como Vocação, de Max Weber.]
Medo (editora Todavia), do premiado jornalista americano Bob Woodward, é um raio X sobre os primeiros meses de Donald Trump como presidente. São dezenas as histórias sobre como a elite burocrática de Washington, o chamado deep state, passou a manipular a circulação de informações até o presidente e sua equipe, temendo que eles tomassem atitudes que consideravam equivocadas. É fato que parte do deep state brasileiro torce o nariz para Bolsonaro e seu time, embora não exista registro de que tenha seguido estratégia semelhante. [O problema em Woodward é a credibilidade das reconstituições minuciosas que ele faz de cenas, situações, atitudes e diálogos. Sempre fica solto um fio de fantasia.]
Em Amanhã vai ser Maior (editora Planeta), a cientista social Rosana Pinheiro-Machado traz a anatomia do distanciamento do discurso da esquerda com os mais pobres. Pesquisadora de fenômenos de massa com as Jornadas de 2013 e a greve dos caminhoneiros, Pinheiro-Machado conta como foi atacada ao observar em entrevistas o crescimento de Bolsonaro em antigos bolsões lulistas.
“O tom das mensagens era algo como: ‘Como assim votar em Bolsonaro se nunca ninguém fez tanto pelos pobres como Lula? Isso só pode ser mentira’. A cegueira, a negação e o autoengano têm sido alguns dos nossos maiores entraves para a resistência ao projeto bolsonarista. Narciso não gosta de nada que não seja espelho. Na imobilidade, foi mais fácil acusar Junho de 2013 e a greve dos caminhoneiros de 2018 de serem expressões coxinhas e fascistas do que tentar entender qual revolta estava sendo mobilizada”, escreve.
O livro é um roteiro para entender o dilema da esquerda, especialmente a petista, em aceitar a derrota de 2018. “A esquerda tem a opção de simplesmente postar memes do tipo ‘que se ralem, eu não votei nele’, numa espécie de versão mais radical de “eu não bati panela” ou “eu não votei no Aécio”. Essa é uma opção legítima, mas confortável. Admitir que há muito a fazer e a repensar é muito mais trabalhoso. As saídas à esquerda não passam pela adoção de uma vã narrativa indignada, mas por uma profunda reconexão com as periferias que leve à indignação: com a falta de comida, a compra de votos, os assaltos sofridos na parada de ônibus, o emprego precário”, escreve.
O melhor livro sobre as origens da recessão brasileira do final de 2014 até o final de 2016 está no pequeno clássico Valsa Brasileira (editora Todavia), da economista Laura Carvalho. A sucessão de erros que empurram o país para o abismo é um relato do poder da influência sobre um presidente. No livro, Carvalho relata a influência direta das reivindicações empresariais na Nova Matriz Econômica do governo Dilma (ironicamente batizada no livro de Agenda Fiesp) e os erros da equipe econômica em acreditar que as medidas de incentivo que haviam dado certo após a crise de 2008/09 iriam ter novo sucesso a partir de 2012.
“Na falta de expectativas de crescimento da demanda e com dificuldade de cumprir seus compromissos financeiros, as empresas não tinham qualquer razão para expandir os investimentos, nem com juros menores. Por que investiriam para expandir a capacidade produtiva se não havia qualquer perspectiva de aumentar as vendas e se já estava difícil cumprir com as obrigações financeiras associadas ao endividamento do ciclo anterior (de 2008/09)?“, escreve Carvalho.
Era do Imprevisto, do cientista político Sergio Abranches, é um sofisticado ensaio sobre a transição da legitimidade política no século 21. Otimista até onde se pode ser com o futuro, Abranches aborda o desencanto da democracia no mundo digital como um processo de transformação não necessariamente negativo. “As revoluções do século 21 se propagarão, talvez como uma pandemia digital, alcançando quase instantaneamente todas as fronteiras globais, das franjas do velho mundo, já na borda desse mundo envolto pelas brumas da incerteza do qual muito pouco ainda se pode ver, só nos resta a dúvida”.
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Belém (PA)
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