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MUNDO DIVERSO - Idris, 2ª pessoa não-binária reconhecida no Brasil: 'Agora eu existo'

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Em um dia frio de outono, Idris Henriques Kawabe acena à reportagem de TAB em frente ao pequeno sobrado onde vive, numa ladeira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. São sete da manhã, hora em que costuma levar o gato Mika para passear.

Aos 27, Idris conseguiu o reconhecimento legal, pela Justiça de Santa Catarina, de ser quem é: uma pessoa não-binária. Na prática, a partir de agora, da certidão de nascimento à inscrição em um curso, Idris pula as opções "masculino" e "feminino" e pode assinalar "outros".

À reportagem, Idris afirma ser uma "pessoa trans não-binária": "tem dias que eu posso fluir até a masculinidade, há dias em que fluo até a feminilidade, e dias que me sinto neutra". Sobre o significado dessa fluidez, rebateu dizendo que não se sente à vontade para definir o que é masculino ou feminino. Para Idris, o importante é não se aprisionar nas "gaiolas da binariedade".

Antes do passeio com o gato, Idris abre a varanda para um bate-papo. Posta a mesa, ladeada por duas cadeiras, e oferece café com voz levemente tímida. Durante a conversa, pede para que o tratamento seja com os pronomes "elu" (em vez de "ele" ou "ela") e "delu", seguindo uma das várias formas de linguagem neutra.

Idris Kawabe pega a xícara de café com movimentos lentos. Diz que não se lembra onde ouviu o termo não-binário pela primeira vez, mas assume ter sentido alívio quando entendeu seu significado, em meados de 2012. "Gosto muito dessa palavra, por ser a negação de um estado. É uma militância pela liberdade."

Com cabelos longos, silhueta delgada e um par de olhos levemente puxados, fruto da ascendência japonesa por parte de pai, Idris explica a origem do seu nome. Usado desde 2013, tem origem africana e significado ligado à sabedoria. "Meu nome me escolheu."

Peixe fora d'água

Idris mora em um pequeno sobrado de tijolinhos claros e portas pretas de vidro. Cortinas encobrem o interior do aposento. Hibiscos enfeitam a varanda, quase como uma cerca-viva.

Idris não tem boas memórias da escola particular onde estudou. Um amigo de 10 anos que brincava com bonecas teve de ser transferido, em razão do bullying que sofria de colegas e professores.

Encarou o episódio como uma lição para se reprimir cada vez mais. Idris até conversava com os colegas de turma. Andava com os meninos e conversava com as meninas. Mas se sentia só, um peixe fora d'água.

Não gostava das brincadeiras. Os meninos viviam se batendo e se xingando de "viadinho". Idris pensava meticulosamente no que ia dizer. Tinha medo de dar opinião. Aos 14 anos, sentia com frequência dor no estômago, indigestão e vivia doente.

No ensino médio, Idris mudou de colégio. Foi para a Escola Técnica Estadual de São Paulo. Durante os intervalos, encontrava no pátio amigas lésbicas que tinham bandas de rock, casais gays e pessoas vivendo relacionamentos abertos — uma miríade de possibilidades de ser e estar no mundo que não imaginava existir.

Lá havia mais ambiente para o diálogo. Participava com frequência de rodas de conversa sobre gênero e sexualidade. "Era um espaço para viver, ser uma pessoa amada e recuperar a autoestima quebrada."

O processo

Idris reside há cinco anos em Florianópolis, onde faz Psicologia na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Passou a se incomodar com o fato de alguns professores usarem seu nome de registro para conversar. "Alguns me chamavam de Idris, outros me chamavam pelo nome da chamada [o nome que lhe foi dado ao nascer]."

Em 2019, tentou alterar o nome em um cartório em Florianópolis. Além de mudar o nome original, também queria deixar em branco o espaço dedicado ao gênero no documento. Mas o tabelião informou que, para fazer as mudanças, de nome e gênero, precisava entrar com um processo na Justiça.

Desde 2018, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconhece que transexuais e transgêneros podem mudar o gênero no registro civil para as opções binárias que existem, masculino e feminino. No entanto, muitos não se sentem nem homens nem mulheres. Como o caso dos não-binários não está regulamentado, eles não conseguem realizar a alteração de nome e gênero em cartório. Precisam entrar com um processo judicial.

Mesmo não gostando de bater de frente, decidiu agir em relação a isso, no seu círculo mais próximo. Teve que aprender a se impor na marra para receber respeito. Quem lhe motivou foi uma pessoa não-binária com quem se relacionou em 2020. "Foi um momento catalisador de revoluções dentro de mim", avalia.

Conversou, então, com Adriano Beiras, professor especialista em psicologia jurídica. Ele direcionou Idris para o Núcleo de Estudos em Direito e Diversidades da UFSC, que fornece assistência jurídica integral e gratuita às pessoas LGBTQIA+. Em setembro de 2020, iniciou-se um mutirão de apoio, liderado por professores e estudantes para iniciar o processo.

Idris sentia o amparo dos professores e colegas, mas não acreditava que a Defensoria Pública iria dar andamento. O tema é novo e de difícil compreensão.

Vontade de viver

Às 8h45 de 12 de abril, uma segunda-feira, Idris recebeu uma mensagem no WhatsApp.

"Psiu. Tá aí? Tenho notícias." Às 10h, outro recado: "Vou te ligar". Era o professor da UFSC e advogado Clarindo Epaminondas de Sá Neto, responsável por formular a tese levada à Justiça. Idris finalmente recebeu a notícia que tanto aguardava.

No dia 10 de abril, a juíza Vânia Petermann, do Juizado Especial Cível e Criminal, vinculado à UFSC, havia determinado que Idris tenha o registro de "sexo não identificado" em sua certidão de nascimento. E também admitiu a mudança de nome.

"Não vou passar mais pelos incômodos burocráticos. É a primeira vez que aceitam minha existência", diz. Idris é a segunda pessoa não-binária a ser reconhecida no Brasil. A primeira a ter o poder de alterar a certidão foi Aoi Berriel, no Rio de Janeiro, em 2020.

Enquanto comemorava com uma amiga em sua casa, Idris recebeu a ligação de um repórter de um jornal local, perguntando sobre a novidade. Após a entrevista, decidiu fazer um ensaio fotográfico caseiro com a amiga para celebrar a conquista.

Naquela tarde, vestiu uma saia preta longa com uma fenda na coxa e uma camisa branca social desabotoada, amarrada na altura da cintura. Pintou as unhas dos pés e das mãos de branco, os olhos com uma sombra dourada e a boca de batom vermelho. Manteve o cavanhaque e o bigode. Fez caras e bocas e deu muitas risadas. "O processo na Justiça me inspirou a falar mais, conhecer outras pessoas não-binárias. Tenho vontade de viver."

Semanas depois, Idris se dirigiu até o Juizado Especial Cível e Criminal, para buscar a nova versão da certidão. O cartório em São Paulo, onde seu documento originalmente fora criado, enviou o registro atualizado para lá — agora com novo nome e a não identificação de gênero.

Antes do processo, Idris não se via "no armário". Mas, com a vitória na Justiça, percebeu que, sim, vivia no armário e que a sentença deu força para que saísse dele. "Agora não preciso ficar gritando tanto para as pessoas me enxergarem."

Após quase duas horas de conversa, Idris decide sair para caminhar pelo bairro.

'Menino desconstruído'

Passear com Mika pelo bairro é uma das poucas atividades que Idris realiza fora de casa. Duas vezes por semana, faz estágio em um projeto de atendimento psicológico para crianças de 0 a 4 anos.

Idris não sabe o que as famílias pensam sobre o tema, mas nunca sofreu preconceito no trabalho. Enquanto uma família trata no gênero neutro, outra chama no masculino e uma terceira no feminino. Prefere que lhe tratem com pronome neutro ou no feminino mas, no ambiente de trabalho, não liga muito para isso. "O que importa é a ética e a dedicação que tenho. O que o gênero tem a ver com o trabalho que eu faço?"

"A relação de Idris com a vida é livre", avalia a estudante de Arquitetura Valquíria Lucena, 26. Ela namorou Idris em 2018, quando se conheceram, em Florianópolis. O relacionamento não monogâmico durou 8 meses e terminou de forma amigável, em razão da mudança de Valquíria para Laguna, onde estuda.

Valquíria, com quem Idris se relacionou entre 2018 e 2019, é uma mulher cis e bissexual. Já Krishna, com quem também teve um relacionamento não-monogâmico entre 2019 e 2020, é não-binária e pansexual. Os relacionamentos íntimos que Idris teve foram tanto com homens quanto com mulheres.

Homens tendem a ter uma postura mais invasiva em relação ao uso da genitália, diferente das mulheres, com quem Idris se sente mais à vontade para fazer sexo.

Idris não contou para a sua família sobre a mudança de gênero na certidão de nascimento. Não teve coragem. Na adolescência, costumava usar saia e, às vezes, maquiagem. Lembra dos momentos que sua mãe lhe encarava com olhar triste e comentava: "Ai, não acredito que você vai sair assim". Às vezes, era apenas um olhar de reprovação precedido por um "silêncio violento".

A mãe não aceita a sua identidade fluida. Seu pai nunca esteve presente, quase não o encontra. Em certa medida, a família dava liberdade para que Idris fosse um menino desconstruído, como define. Mas sempre um menino.

Tem um irmão 13 anos mais velho. São amigos. Ele se preocupa com os preconceitos que Idris possa sofrer, apesar de continuar lhe tratando pelo nome de registro.

'Quero ser mãe'

No percurso de volta da trilha, duas crianças conversavam na calçada. Era uma menina e um menino; ele trazia uma galinha a tiracolo. As crianças nos olhavam com curiosidade.

O papo foi interrompido pela saudação de Idris para a menina que, envergonhada, virou-se. "Quando tiver uma renda, vou entrar com processo de adoção. Mas sempre tive vontade de passar pela gestação."

Quando criança, Idris imitava mulheres e colocava papel higiênico na cueca para fingir menstruar. "Sempre foi o desejo da minha vida: queria ter um útero para engravidar, poder amamentar." A fluidez já estava ali.

(Uol)


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