História de Rondônia: tenente-coronel Abelardo Mafra governou duas vezes e foi preso político em 1964, sob protesto da esposa | Notícias Tudo Aqui!

História de Rondônia: tenente-coronel Abelardo Mafra governou duas vezes e foi preso político em 1964, sob protesto da esposa

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O orçamento não passava de 140 mil cruzeiros. O velho território aparecia inteiro no mapa do Brasil, mas dificilmente recebia do governo federal o que tinha direito para custeio, desenvolvimento social e investimentos.

Em tempo de migalhas para territórios federais, o tenente-coronel paraquedista Abelardo de Alvarenga Mafra [filiado ao Partido Trabalhista Nacional] chegou a Porto Velho, governou em duas ocasiões e, ao cabo da segunda, em setembro de 1964, foi preso durante 52 dias no navio Princesa Leopoldina, no Rio de Janeiro, sob protestos da esposa Beatriz Segato de Alvarenga Mafra.

Por que a prisão? O Comando da Revolução de 1964 cassou-lhe pelo Ato Institucional nº 1, que atingiu 25 militares paraquedistas, dos quais, dez demitidos e 15 reformados. Desses 25, quatro teriam participação direta no movimento fracassado para prender o governador Carlos Frederico Werneck de Lacerda [1961-1965]*, em quatro março de 1963. Mafra era assistente  do comandante do Núcleo da Divisão Aeroterrestre, general Alfredo Pinheiro Soares Filho, e se envolveu nessa operação, junto com o comandante da Companhia de Engenharia, major Rodovalho Alves dos Reis.

Lacerda fora um dos articuladores civis do golpe de 1964, porém voltou-se contra ele em 1966, com a prorrogação do mandato do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco. Em novembro de 1966, após ter sido perseguido pelo regime que ajudou a criar, lançou o movimento de resistência denominado Frente Ampla, liderado por ele e por seus antigos opositores João Goulart e Juscelino Kubitschek. Foi cassado em dezembro de 1968.

Em seu segundo governo, Mafra criou a Escola Artesanal de Guajará-Mirim, reabriu a olaria do governo, asfaltou a estrada do antigo aeroporto [atual Avenida Presidente Dutra] até o Porto Velho Hotel [hoje administração da Unir] e retomou as obras da BR-364. Criou uma companhia mista de desenvolvimento constituída por garimpeiros de cassiterita, empresas privadas e órgãos governamentais, entretanto, o projeto fora vetado pelo Conselho de Segurança Nacional.

Firmou convênio com a FAO [agência da ONU para o combate à fome e à pobreza por meio da melhoria da segurança alimentar e do desenvolvimento agrícola], contemplando a borracha.

DEMITIDO POR TELEGRAMA

Em menos de três anos desde o primeiro ao segundo período de governo de Mafra, o Território Federal de Rondônia teve cinco governadores, todos com mandatos curtos.

Terceiro nessa nova fase, ele sucedeu Paulo Nunes Leal**, entretanto, sua experiência administrativa viera do período 1956 a 1957, quando era major e governara o Território Federal de Fernando Noronha, arquipélago pernambucano. “Sem água potável e com apenas duas professores, uma das quais pedira demissão e um associação civil que protegia a maternidade e a infância”, frisava. Ali existia o famoso presídio a céu aberto requisitado pelo presidente Getúlio Vargas em 1938 para abrigar 600 homens considerados subversivos, entre eles, o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella.

Abelardo Mafra: dois períodos

Terceiro e o nono governador do Território Federal de Rondônia, Mafra (PTN) viveu o começo de conturbado período de troca de governadores entre 1961 e 1964, ainda com a economia sustentada pelo extrativismo. Exerceu o cargo de 18 de março de 1961 a 13 de setembro daquele ano – quase seis meses. Voltaria pelo Partido Social Democrático (PSD) para outro meteórico governo de três meses, de 27 de janeiro de 1964 a 24 de abril daquele ano. Quando assumiu o cargo, Rondônia tinha apenas um deputado federal, Renato Clímaco Borralho de Medeiros (PSP).

Sumariamente exonerado do governo e excluído do serviço militar ativo, o tenente-coronel foi transferido para a reserva [o equivalente a aposentadoria para militares] e aposentado na patente de general de brigada, graças à anistia política em 1980.

Relatório de Mafra na internet revela que fora prestigiado por dois presidentes da República – Café Filho, autor de sua nomeação, e Juscelino Kubistchek que o visitou em Fernando de Noronha. A experiência o credenciava a atuar na Amazônia Ocidental Brasileira.

No arquipélago, ele se deparou com a falta de coleta de lixo, moscas e mosquitos, planejou um forno crematório, e conseguiu três atuações de uma equipe do Departamento Nacional de Endemias Rurais para dedetizar todas as casas. Numa das vezes exterminou 1.500 ratos.

Mesmo com larga folha de serviços e por mais que pudesse conciliar interesses, Mafra teve a vida pessoal devassada. Um simples telegrama dos Correios, entregue no Palácio Presidente Vargas, em Porto Velho, convocou-o com urgência a Brasília e de lá ele foi levado a um quartel do Exército no Rio, recebendo ordem de prisão.

Diversos oficiais superiores, capitães, tenentes e aspirantes – ao todo 112 – da Aeronáutica, Exército e Marinha – também estavam ligados aos ex-presidentes Jânio Quadros e João Goulart também foram presos na mesma época.

“O telegrama trouxe o golpe militar para o Palácio”. Francisco Matias, historiador

O então o secretário geral Eudes Campomizzi Filho assumia o cargo, com amplos poderes, mas nem esquentou a cadeira, conforme explicará o próximo capítulo desta série: a intervenção no Território Federal.

A força eleitoral cutuba estava em Porto Velho. Já os pele curtas, na descrição do professor Valdir Aparecido de Souza, da Unesp, foram assim denominados pela escassez de roupas e pela pobreza: “Eram os ferroviários, profissionais liberais e trabalhadores em geral, representados pelo médico Renato Medeiros, os renatistas. “Essa, talvez, seja a primeira demonstração do sentimento de pertença que se tem registro na região, porém o que os unia seria as classes sociais e categorias políticas às quais pertenciam e não a região em si”, assinala.

Mafra apoiou o bispo da Prelazia de Guajará-Mirim, dom Francisco Xavier Rey, e o padre Luiz Roberto Gomes de Arruda a evitar o alastramento de doenças e massacres praticados por seringalistas contra indígenas. No auge da expedição de contato dos Pacaás novos para juntá-los a outros grupos da mesma etnia contatados nos anos 1950, a Prelazia socorria indígenas com gripe, fome e tuberculose.

Enviou um carregamento de remédios ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI).  A expedição partiu de Guajará em 20 de maio de 1961, dois meses após a sua posse.  Apesar de todo o esforço, os remédios escassos e a falta de salários levaram antigos expedicionários a abandonarem seus postos. Em agosto de 1963, na acareação com o diretor do SPI, Moacyr Ribeiro Coelho, a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados constatou que a expedição começara antes do governo João Goulart e, em nenhum momento, desmentira a morte de índios por pneumonia denunciadas pelo padre Luiz Arruda.

Salomão Tio´Mi, ancião dos Pacaás novos, testemunhou massacres ao seu povo

“O desastre continuou após o contato”, conta o jornalista Rubens Valente, em seu livro Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura.

“Entre setembro e dezembro de 1962, pouco tempo depois da expedição, o sertanista Francisco Meireles esteve na região por ordem de Coelho. Até pouco tempo antes temidos guerreiros e hábeis caçadores, os Wari agora brigavam por comida no chão”.

“Último a ser atraído, o grupo  Pacaás novos estava em péssimas condições assistenciais e faminto. Longe de suas lavouras, não tinham mais com que se alimentar. Quando os tropeiros procederam à distribuição de ração aos cavalos, tristemente os índios disputavam rações de milho com os animais”, descreve o jornalista.

Lembra o médico Gilles de Catheu, da Pastoral Indigenista da Diocese de Guajará-Mirim, que o povo Oro Win foi vítima de massacres perpetrados na década de 1950 e no início da década de 60. Em 1994, o seringalista Manoel Lucindo foi condenado pelo genocídio perpetrado em 1963 na cabeceira do rio Pacaás Novos. Falta investigar o massacre do igarapé Tiradentes (“Teteripé”), afluente do rio Cautário, que teve requintes de crueldade”, ele pede.

Ao lamentar em nota a morte do ancião Salomão, Tio´Mi, aos 96 anos, em 17 de outubro de 2017, na aldeia São Luiz [alto Rio Pacaás novos], Catheu lembra que ele assistiu impotente à morte de seus irmãos e de sua esposa grávida. “Ela estava escondida no mato com seus filhos. Achando que o marido tinha sido morto, disse aos seus filhos que não queria mais viver e se entregou. Salomão viu um homem abrir a barriga da esposa com terçado e retirar a criança que foi jogada para cima e aparada com a ponta do terçado. Quando os brancos saíram da aldeia, ele conseguiu flechar um deles. Depois, cavou uma vala bem grande para sepultar os mortos”.

“Meses após o massacre da cabeceira do rio Pacaás novos, o seringalista Manoel Lucindo juntou o povo Oro Win na sede do seringal São Luiz onde passou a conviver com os seringueiros. Foram novamente dizimados, não pelas armas, mas pela gripe e o sarampo” – Gil de Catheu, médico

Segundo Catheu, os sobreviventes trabalharam a seringa e a poaia “num regime de escravidão”. Na década de 1970, a Funai levou os Oro Win para a Terra Indígena Rio Negro Ocaia onde moram várias etnias do povo Oro Wari, seus inimigos tradicionais. Em 1991, os Oro Win voltaram para sua terra que faz parte da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau.

“Daí em diante, o povo Oro Win voltou a crescer, formou novas aldeias e fortaleceu sua identidade. Vovô Salomão desempenhou um papel muito importante no ensino da língua, dos mitos, das tradições, dos cantos e danças. Nos últimos anos, ele trabalhou com o linguista Joshua que registrou mitos, cantos e uma festa inédita. A história dá muitas voltas. Quem podia imaginar, 51 anos atrás que o neto de Salomão Oro Win sentaria na Casa de Leis [Câmara Municipal] de Guajará-Mirim, ao lado de Sérgio Bouez, neto do seringalista Manoel Lucindo?” – indagou Catheu em 2015.

NA CASA DO GOVERNADOR, ORDENS PARA TRANSPOSIÇÃO

Francisco Mendes, atualmente com 85 anos, morador na Vila Tupi, ex-funcionário da usina de energia elétrica da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, lembra do apoio do governador Mafra. A usina foi depois transferida para o governo com o nome de Serviço de Abastecimento de Água, Luz e Força do Território [Saalft].

Francisco Mendes: “O governador nos recebeu em casa”

“A gente tavatrabalhando, eu com o finado Dico. Nessas alturas eu já era mecânico, pois fiz o curso pela Escola Nacional da América do Norte, junto com o Aragão da Usina de Borracha. Fui ligar a chave de tensão sem luva e peguei uma descarga elétrica muito forte, bati a cabeça e tive que me tratar em Manaus” – relatou Mendes em 2018 ao jornalista Sílvio Santos de Macedo, Zé Katraka.

Segundo o ex-servidor, houve um atrito entre ele e o colega Dico e ambos foram suspensos pela chefia da usina. “Os professores Lourival Chagas e Abnael Machado de Lima souberam que eu estava sem trabalhar, e como a gente havia estudado junto no (Colégio) Dom Bosco me chamaram para trabalhar como professor. O funcionário Goleiro foi reclamar pro governador Mafra e o negócio fedeu a chifre. Terminei voltando pra Usina e foi quando o Manoel caiu vítima de um tiro de rifle na perna, quando caçava no campo do Mário Monteiro (hoje 5º BEC); aí descobrimos que não tínhamos direito a tratamento médico e nada, terminou que ele morreu.

Datilógrafo, Mendes redigiu uma carta de reivindicações assinada pelos servidores e liderou o grupo que visitou o governador à noite, na casa dele. “Nós todos éramos contratados como assalariados extras, e ele realmente conseguiu nos colocar como funcionários federais do quadro da União”, conta. E o ato foi assinado no Palácio Presidente Vargas.

Mendes esclareceu a Zé Katraka que o Saalft recebera dois motores a gasogênio. Quando chegaram motores holandeses, Goleiro mandou desmontar os primeiros, jogando as peças no meio da Rua do Coqueiro, ao lado da usina. “A imprensa bateu forte, dizendo que ele havia jogado os motores fora. Não sei por qual motivo, Goleiro mandava e desmandava no governo, só se deu mal com a nossa turma, na questão do abaixo- assinado.

CARTA DA ESPOSA DE MAFRA

Setembro de 1964: o ex-governador de Rondônia passara 52 dias preso a bordo do navio Princesa Leopoldina, no Rio. Em carta ao marechal, que viria a ser o 2º presidente do regime militar, ela explica: “Uma semana depois de voltar ao lar, ele foi chamado ao Ministério da Guerra, e lá ouvido pelo general Lyra Tavares como ‘testemunha’ no caso de suposto atentado ao governador da Guanabara”.

“Como se não fosse suficiente, lhe cortam a carreira, mandando-o para a reserva, e agora é expulso do Exército” – protestou Beatriz.

“(…) É incrível que digam que digam ter feito uma revolução para apurar subversão e sejam punidos homens que nada fizeram, além de cumprirem seus deveres. Homens esses que, por serem humanos, compreensivos. Disciplinados e fiéis à sua Pátria, souberam conduzir seus comandados com inteligência e respeito, conseguindo transformá-los em amigos” – lamentou.
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*   Carlos Lacerda recebera o nome de Carlos Frederico como homenagem aos pensadores políticos Karl Marx e Friedrich Engels. Era filho do político, tribuno e escritor Maurício de Lacerda (1888–1959) e de Olga Caminhoá Werneck (1892–1979), e neto paterno de Sebastião Lacerda, ministro do Supremo Tribunal Federal e ministro dos Transportes no governo de Prudente de Morais. Inimigo político de Getúlio Vargas, foi o grande coordenador da oposição à campanha dele à presidência em 1950 e durante todo o mandato constitucional do presidente, até agosto de 1954. Uniu-se a militares intervencionistas e aos partidos oposicionistas (principalmente a UDN) num esforço conjunto para derrubar o presidente, por meio de acusações que publicava em seu jornal, Tribuna da Imprensa. Vargas suicidou-se em seu quarto, no Palácio do Catete.

* * O engenheiro militar e deputado Paulo Nunes Leal, segundo governador do “novo” território no período entre 6 de novembro de 1958 e 18 de março de 1961 é mencionado em matéria da série de ex-governadores do Guaporé.


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