CURIOSIDADE - De bambu a fibra de vidro, vara é o estilingue humano
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Fabiana Murer vagava pela Vila Olímpica de Pequim com a cabeça nas alturas. Não se conformava com o acontecido naquele 18 de agosto de 2008, quando disputou a final do salto com vara praticamente sem vara, já que a sua havia sumido no palheiro da organização dos Jogos.
As câmeras a viram chorar, discutir com os árbitros, meter-se à frente da corrida de uma competidora chinesa, sentar-se no chão com o olhar vago. Até lhe emprestaram uma, lá, mas as tentativas de galgar os 4,65 metros deram n'água. Sobrou sair do Ninho de Pássaro (o Estádio Olímpico) com o 10º lugar — muito pouco para a brasileira que tinha estatura para uma medalha.
Naquela madrugada pela Vila, Fabiana encontrou Elson Miranda de Souza, seu treinador de então e hoje marido, tão desolado quanto ela. Os dois foram parar num depósito de implementos, onde deram de cara com um chinês tirando foto ao lado de um objeto longilíneo de fibra de vidro com um "Fá" escrito na ponta.
"É a minha vara!" A atleta tomou a companheira desgarrada de volta. A China não explicou o extravio nem aceitou anular a prova, apesar do protesto formal da Confederação Brasileira de Atletismo. Murer acabou voltando ao país para o Mundial em 2015. Ficou em segundo lugar na competição.
Se alguém achou frescura tamanho apego, é porque ainda não entendeu as particularidades desse implemento do atletismo.
Ao contrário do peso, do dardo e do martelo, não é a vara que é lançada, e sim o atleta. Então é bom que ele escolha um estilingue que o arremesse com eficácia e segurança para o outro lado. "O atleta pode fazer a decolagem, mas não conseguir chegar ao colchão e voltar para a pista, e aí o tranco é muito ruim", diz Fabiana ao TAB, por telefone.
Outro dado é que, para acompanhar a subida da barra ou sarrafo, o saltador precisa escolher um modelo para o qual consiga transferir energia durante a corrida. Uma vara muito dura, por exemplo, enverga pouco e desenverga logo em seguida. Não serve a qualquer um. Contam ainda a velocidade, a potência, o dinamismo e o peso do saltador, o vento da hora, a qualidade da pista e, claro, a subida do sarrafo.
O atleta não vai chegar muito longe, mas pode saltar até com vara de bambu, se quiser. Era o material das versões do início do século 20. Elas avançaram para o alumínio e então para as de fibra de vidro, criadas nos anos 1950, e para as de fibra de carbono, desenvolvidas no início dos 1990. Foi com a de vidro que o ucraniano Sergey Bubka bateu seus 35 recordes mundiais.
Se a vara quebrar, o que não é comum, o atleta pode adicionar mais um salto às três tentativas padrão. Duro é recuperar-se do susto. Em 2012, o cubano Lázaro Borges, na época vice-campeão mundial e campeão pan-americano, viu a vara romper em três pedaços nas eliminatórias para a Olimpíada de Londres. Não se machucou por fora, mas sua concentração foi para a cucuia e ele não atingiu a marca esperada.
O francês Renaud Lavillenie, campeão olímpico de 2012 e vice em 2016, fraturou o polegar esquerdo em julho de 2020 depois que sua vara partiu no quintal de casa, onde ele montou uma estrutura para treinar e participar de duas competições a distância durante a pandemia. Uma dessas provas caseiras foi o Ultimate Garden Clash, criado por Lavillenie, o sueco-americano recordista mundial Armand Mondo Duplantis e o norte-americano Sam Kendricks. Os caras tinham de completar, em meia hora, o maior número de saltos de 5 metros nos próprios jardins. Lavillenie e Duplantis dividiram o ouro com 36 saltos, enquanto Kendricks ficou nos 26.
Provas domésticas têm uma vantagem: o atleta não precisaria se submeter ao estresse de transportar, pra cima e pra baixo, o tubo com o feixe de varas. Afinal, vai para mais de metro o comprimento dessas magricelas. Thiago Braz, campeão na Rio 2016, salta com vara de 5,20 metros. As de Fabiana, importadas da marca norte-americana UCS Spirit (sua patrocinadora), chegavam a 4,60. A russa Yelena Isinbayeva, recordista mundial, normalmente usava um implemento do mesmo tamanho, mas voltou para as de 4,45 quando mudou de técnico. Lembrando que, embora a prova de salto com vara estivesse presente desde os primeiros Jogos em Atenas, em 1896, as mulheres só foram autorizadas à prática da modalidade em Sydney 2000.
As companhias aéreas têm sido cada vez mais inflexíveis em relação ao transporte dessas oversizes porque não é tão simples assim ajeitá-las nos compartimentos de carga, onde precisam conviver com contêineres, por exemplo. Não raro os atletas precisam viajar num voo enquanto seguem em outro seus implementos de estimação. Roem as unhas até o toco com medo de que os bibelôs se quebrem ou extraviem. O custo de cada uma varia entre US$ 300 e US$ 600.
Quando a viagem é por terra, o percurso também não é fácil. Se a opção é por ônibus, há que se encontrar algum cujas janelas abram, já que varas não fazem curva. Se entram, dormem no corredor do coletivo. Caso o transporte seja por carro, os atletas optam por amarrar o tubo no rack, o que não impede que sejam parados por oficiais do trânsito, cismados com o varão. Foi numa vinda do Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos (SP), que um policial quis saber se aquele negócio em cima do carro de Fabiana era uma asa-delta. Quando reconheceu a motorista, mostrou-se fã, e o episódio de Pequim veio à tona. "Eu temia que os brasileiros não entendessem meu drama, mas foram solidários comigo e fui muito bem recebida."
Fabiana, duas vezes campeã mundial na prova, parou de saltar em 2016 por causa de uma hérnia de disco na cervical. Hoje atua como fisioterapeuta em um instituto de recuperação e treinamento em São Paulo, que ajudou a erguer. Deixou seus implementos nas mãos de Karla Rosa, técnica de Juliana Campos, tricampeã brasileira da modalidade, vista como sua sucessora natural. A vara pródiga está entre elas,
Nomes para ficar de olho em Tóquio: Thiago Braz e Augusto Dutra Oliveira. Thiago, recordista olímpico na Rio 2016 com 6,03 m, é o sexto no ranking mundial. Augusto obteve o índice olímpico no dia 24 de agosto de 2019, ao saltar 5,80 m em Paris. É o 12° na classificação.
(Uol)
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