A BÍBLIA - Teólogo critica 'supremacia fundamentalista' no Brasil: "Evangelhos são claros: Jesus não tinha nenhum apego ao poder"
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Para o teólogo e pesquisador Ronilso Pacheco, de 44 anos, parte substancial das igrejas evangélicas no Brasil, principalmente as grandes denominações, tem sido conivente com a violência sofrida por pessoas negras e pobres das periferias de grandes cidades, população que forma a enorme massa de fiéis dessas mesmas igrejas.
"A leitura da igreja e de grande parte da liderança evangélica é de que a violência tem uma razão de ser, tem legitimidade, se ela for exercida pela polícia", diz Pacheco, em entrevista à BBC News Brasil.
O ativista e escritor falou com a reportagem a partir de Nova York, cidade onde está vivendo com a família durante a execução de seu mestrado no Union Theological Seminary da Universidade de Columbia.
Na entrevista, Pacheco explicou o conceito de Teologia Negra, e como essa vertente ajuda a compreender as relações entre racismo, escravidão e cristianismo. Também comentou o comportamento de lideranças evangélicas na pandemia de covid-19 e as relações de grandes igrejas com o governo de Jair Bolsonaro.
Além de pesquisador, Ronilso Pacheco também é pastor auxiliar na Comunidade Batista de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e autor do livro "Teologia Negra, o sopro antirracista do espírito" (Ed. Novos Diálogos/Recriar).
Confira os principais trechos da entrevista a seguir.
O pesquisador Ronilso Pacheco atualmente mora em Nova York, onde faz mestrado em teologia na Universidade de Columbia |
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Do que se trata a Teologia Negra?
Ronilso Pacheco - Podemos chamar a Teologia Negra de um movimento teológico que está basicamente direcionado a questões de colonização e opressão das populações negras. Ela envolve os contextos de escravização e de políticas antinegras ao redor do mundo.
Ela surge surge como uma resposta direta à teologia e à igreja que foram parte fundamental para o sucesso da colonização e da escravidão. É um movimento de resistência teológica, que está disputando os sentidos da teologia e da Bíblia naquilo que diz respeito à cultura africana e à população negra.
Ela aparece durante uma convergência de episódios ocorridos nos Estados Unidos, em especial na década de 1960, com a luta pelos Direitos Civis. Ao mesmo tempo, teólogos e clérigos na África do Sul também se unem para pensar uma teologia contra o apartheid e contra a perspectiva de inferioridade do negro.
O senhor cita em um texto a busca do "mundo ideal" empreendida pelos cristãos brancos americanos, e diz que o Brasil espelha esse conceito. Poderia explicar melhor?
Pacheco - Nos Estados Unidos, esse "mundo ideal" está muito ligado ao mito da causa perdida. É uma história bastante conhecida: uma espécie de refúgio narrativo dos brancos do sul dos EUA, que perderam a guerra civil para as ideias abolicionistas do Norte, mas se sentem vitoriosos moralmente.
Esses estados mantiveram a 'pureza dos valores' e uma sociedade coesa, comprometida com Deus, com os valores cristãos, com a família e com a pátria.
Nesse mundo ideal, o racismo não existe nem faz diferença. As tensões da sociedade são neutralizadas para manter os privilégios daqueles já privilegiados, evitando discutir os prejuízos que o racismo causou e causa à população negra.
Nesse contexto, há frases como 'em Deus não existe preconceito'. Obviamente, em Deus pode não existir, mas na sociedade existe. Então, esse 'mundo ideal' é usado como um recurso narrativo para dizer que não existe opressão nem privilégios.
Esse conceito tem uma forte influência na igreja evangélica brasileira.
Qual a relação da branquitude de Jesus com o racismo?
Pacheco - Esse debate está no foco da Teologia Negra. Mas não há a discussão se Jesus era negro ou branco, porque em relação a isso não há muito o que discutir: é difícil imaginar uma figura branca na Palestina daquela época.
Porém, a associação de Deus e de Cristo com a branquitude foi extremamente importante para a manutenção do racismo, do colonialismo e da 'inferioridade da população negra'. Com isso, vieram a violência e a opressão.
Cristo branco elimina qualquer possibilidade de identificação teológica e bíblica com a população negra. Deliberadamente, a presença e o protagonismo do continente africano são apagados, como uma forma de justificar a colonização e a escravização. Além disso, há uma tentativa de apagamento da tradição e religiosidade da África.
O branco, identificado com a imagem do Jesus Cristo, se vê como um povo especial e original. Essa essência está no centro do debate da invasão do Capitólio: foi a reivindicação de uma população que se enxerga como original e que quer retomar seu país. E quem é esse povo original nos EUA? São os indígenas? Não, para esse grupo, o povo original é o branco, europeu, cristão, sobretudo homem.
Se você falar que Cristo era negro, precisa explicar por que está dizendo isso. Mas nunca questionamos a imagem de um Jesus branco e de olhos azuis, embora isso fosse inviável.
Então, qual é a força da identificação entre Jesus Cristo e o povo africano e de pele negra? Esse é o debate que a Teologia Negra apresenta, mais do que falar da cor da pele.
O governo Bolsonaro costuma falar em "cristofobia" no Brasil. Ao mesmo tempo, existem várias pautas progressistas que são rechaçadas por grupos evangélicos, como se elas fossem uma ameaça aos cristãos. O sr. acha que essa confusão é deliberada?
Pacheco - Não acho que seja uma confusão. Há um projeto organizado e deliberado para forçar a existência de uma cristofobia no Brasil.
Não há cristofobia no Brasil por diversos motivos: os cristãos são a maioria e têm o Estado em sua mão. Todo poder do Estado está na mão dessa representação cristã hegemônica.
A ideia de cristofobia não é nova, mas fracassou em seus primeiros passos na década de 2000, quando houve a tentativa de associar essa suposta perseguição a qualquer ofensa à Igreja e ao cristianismo.
Ela foi retomada sobretudo depois da passeata em que uma travesti desfilou representando Jesus. Ali houve uma tentativa do deputado Marco Feliciano de tentar trazer a cristofobia para a discussão.
Agora, essa proposta volta e ganha força com o bolsonarismo. O que temos é um chefe do Executivo quase comprometido com a ideia de um nacionalismo evangélico. Ele já loteou para evangélicos uma parte significativa do poder, como educação, direitos humanos, cultura, relações exteriores.
Assim, a cristofobia ganha uma injeção de ânimo para entrar no debate como algo importante.
Por isso digo que não é uma confusão, é um projeto em curso e muito bem desenhado para a manutenção de uma supremacia cristã, conservadora e fundamentalista, sobretudo.
O que ocorre é a apropriação de casos isolados muito distantes do Brasil para construir uma narrativa em que até piadas de um programa de humor possam virar um caso de cristofobia. É como se esse tipo de conteúdo tivesse o mesmo peso dos ataques físicos e violentos que cristãos sofrem em alguns pontos do mundo.
A ideia da cristofobia é um processo muito nocivo para o Brasil, e que pode se fortalecer a partir de 2022 ou retroceder, a depender da forma como lidamos com esse debate.
Ao mesmo tempo em que se fala de cristofobia, há ataques a terreiros e a membros de religiões de matriz africana. Chegou-se a noticiar que 'traficantes evangélicos' exigiram o fechamento de terreiros em territórios controlados por facções criminosas. Como analisa?
Pacheco - É difícil dizer por que isso está acontecendo, mas existem alguns fatores que ajudam a entender.
Um deles é teológico. Saímos de uma postura teológica de negação e de falta de respeito com a cultura e a religiosidade africanas para um cenário de violência deliberada
O segundo fator é uma nova configuração dos territórios periféricos, em especial no Rio, em São Paulo e em Salvador.
Até a década de 1970, havia uma identificação muito mais forte das periferias com as religiões de matriz africana. No filme "Cidade de Deus", por exemplo, há uma cena muito forte que mostra essa identificação: Zé Pequeno faz aquele ritual do fechamento do corpo. Fechar o corpo era muito comum na periferia, para aqueles que vão à luta, que pegam em armas...
Essa configuração mudou à medida que as igrejas pentecostais se tornam cada vez mais presentes nessas regiões. Essas igrejas podem nascer na sala de uma casa, uma igrejinha da família, daquela rua.
Essa aproximação com as comunidades locais mudou toda uma geração. Há jovens na periferia, alguns deles envolvidos no varejo da droga, com famílias inteiras evangélicas.
Existe também um grande trabalho de evangelização dentro dos presídios. Não há nenhuma pesquisa científica que aponte com dados se esse trabalho tem influência nos ataques aos terreiros, mas a gente infere que essa relação é significativa.
Também não se pode deixar de lado o clima de hostilidade que veio com o governo Bolsonaro. Temos um ambiente de afirmação de superioridade do cristianismo, uma afirmação da hegemonia cristã que pode ser até violenta. Isso atravessa relações, inclusive no campo marginal.
Ataques a terreiros têm sensibilizado muito menos as comunidades, também. De certa forma, muitos evangélicos acreditam que essa batalha é espiritual, como se o fim de um terreiro fosse uma vitória espiritual.
Como a pandemia tem sido abordada pelos grupos evangélicos que sustentam o governo Bolsonaro?
Pacheco - Não dá para analisar essa situação de maneira hegemônica.
O governo Bolsonaro tem a adesão cega e militante das grandes lideranças evangélicas conservadoras e fundamentalistas. Os donos das mega-igrejas do Brasil apoiam Bolsonaro, como Universal, Igreja da Graça, Poder de Deus...
Esses líderes chamam muita atenção, porque eles têm muita visibilidade e dinheiro. Esse núcleo está com Bolsonaro e mantém a mesma loucura de negação da realidade e dos efeitos da pandemia.
Não por acaso, quando a pandemia tinha matado 5 mil pessoas, Bolsonaro fez uma convocação na Páscoa para um período de oração e jejum pelo Brasil. Todos esses pastores estavam lá, todos juntos.
Alguns líderes até se recusaram a fechar as igrejas para frear a disseminação do vírus no início da pandemia, como o pastor Silas Malafaia.
Pacheco - Esse grupo se manteve muito coeso no apoio ao governo e ao negacionismo. Eles disputaram o sentido da igreja como um serviço essencial, como se isso estivesse em questão.
Para mim, esse movimento teve um nível de responsabilidade quase criminoso, se levarmos em consideração a quantidade de pessoas que as igrejas conseguem reunir em seus cultos. Muitos de seus membros são idosos, inclusive.
Por outro lado, houve um racha dentro da igreja conservadora. Um grupo, mesmo próximo ao governo Bolsonaro, foi autônomo o suficiente para respeitar os protocolos e a gravidade da pandemia.
Houve igrejas que foram extremamente enfáticas em seus posicionamentos pelo respeito ao distanciamento social e pelos protocolos de segurança, mesmo que sua arrecadação de dízimos tenha diminuído. Há igrejas que não reabriram até hoje.
E muitas das igrejas nas periferias não só respeitam os protocolos, como foram extremamente importantes para as comunidades locais, com assistência à população pobre que perdeu sua renda durante a pandemia. Forneceram ajuda na alimentação, na saúde, no transporte para hospitais e em diversas outras áreas.
Não dá para ter uma visão generalizada, embora tenhamos de enfatizar a responsabilidade criminosa dos grandes pastores conservadores e fundamentalistas, que se mantiveram e se mantêm com a mesma postura negacionista com relação aos efeitos da pandemia no Brasil.
O sr. já escreveu que igrejas evangélicas ficam em silêncio em relação à violência que se abate sobre negros e pobres das periferias. Por que existe esse silêncio?
Pacheco - Esse silêncio é muito comum, e é consequência de uma postura teológica que está na formação da igreja evangélica brasileira. De uma maneira geral, a igreja hegemônica nega o conflito.
Outro ponto é o lugar que a própria violência tem na teologia. A igreja valoriza muito a autoridade: ouvir e respeitar a autoridade é uma 'postura boa'. Existe uma ideia de que se você obedece a lei, se obedece a sua liderança, você está obedecendo a Deus.
O que é uma operação policial mal feita, desnecessária, violenta e racista na periferia? Em tese, para a igreja hegemônica, a violência não aconteceria se as pessoas obedecessem a autoridade, se não reagissem quando abordadas. As crianças, vítimas de balas perdidas, não morreriam se não estivessem expostas. É uma ideia de 'quem não deve não teme', e que as coisas acontecem da maneira que deveriam acontecer.
Ou seja, a leitura da igreja e de grande parte da liderança evangélica é de que a violência tem uma razão de ser, tem legitimidade, se ela for exercida pela polícia.
Parece loucura, mas essa narrativa ilustra a relação de Deus com a humanidade. Se você estiver certinho, sem pecados, você não tem o que temer, não precisa ter receio da ação da autoridade.
Portanto, não é só um silêncio das igrejas. É conivência.
Essa atitude não é contraditória com o próprio cristianismo? A Bíblia conta que Jesus foi torturado e morto porque era considerado um bandido, transgressor, uma ameaça à autoridade...
Pacheco - É absolutamente contraditória. Mas estamos falando de uma realidade da igreja no Brasil, que é conservadora e fundamentalista.
Essa igreja trai a história de Jesus quando nega seu sofrimento, sua tortura e sua morte na cruz. Há uma leitura simplista de que a forma da morte não importa, de que Jesus morreu para salvar a humanidade.
Essa postura também trai a história de como Jesus se relacionou com o poder. Os evangelhos são muito claros ao mostrar que Jesus não tinha nenhum apego ao poder. Pelo contrário, ele prega a ideia do serviço. O texto diz: 'Aquele que quiser ser maior vai ser aquele que servir mais'.
E nosso exemplo de liderança evangélica é exatamente o oposto: são pessoas ricas e muito bem servidas. E elas atuam com fiéis que muitas vezes estão abaixo da linha da pobreza.
Temos igrejas no Brasil que viraram grandes grupos empresariais multimilionários.
Pacheco - Mesmo quem nunca leu a Bíblia tem na memória a figura de Jesus atuando com as pessoas nas ruas, e não dentro dos templos.
Em contrapartida, nos textos, os piores momentos de Jesus ocorrem dentro dos templos, onde ele é ameaçado, de onde tem de fugir, onde ele é sempre confrontado.
Então, essa igreja trai Jesus em todos os aspectos, de forma proposital. É preciso neutralizar a história de Jesus para justificar toda a riqueza da igreja, os pastores milionários e todo esse apego ao poder.
Parte desses líderes evangélicos também apoiou os governos do PT. Quando se deu essa mudança?
Pacheco - O governo Lula, sobretudo, teve uma participação considerável de evangélicos progressistas, pessoas que têm uma história de defesa dos direitos humanos e da democracia.
Essa é uma história pouco conhecida, mas muitos pastores e lideranças evangélicas foram presos, perseguidos e exilados durante a ditadura militar. Essas pessoas tiveram uma participação importante na redemocratização do país, mesmo que os lobos da bancada evangélica já estivessem ali atuando no entorno do poder.
Apesar desse apoio a Lula, o lugar conservador e fundamentalista estava sendo disputado. Quando surgiu, Bolsonaro o conquistou por inteiro. Ali está a virada.
A eleição de Bolsonaro consolida a dificuldade de acesso e visibilidade para qualquer evangélico progressista. Foi um projeto muito bem construído e conquistado. É por isso que eles não vão entregar esse projeto tão facilmente, sobretudo em 2022.
Você costuma criticar a visão estereotipada dos evangélicos como um bloco que seria apenas formado por pessoas conservadoras. O que deveríamos fazer para fugir dessa armadilha?
Pacheco - Temos muitos evangélicos de esquerda e progressistas.
Acho que deve existir uma disposição em ouvir e aprender. Esse é um detalhe aparentemente simples, mas que faltou nesse processo todo.
Ainda existe um ranço iluminista por parte da esquerda: a ideia da instrução, de mostrar o caminho e do trabalho de base. O que é esse trabalho de base? Formar a periferia para que, no momento certo, na eleição, você possa contar com esses grupos.
Talvez esse trabalho tenha que ser menos estratégico e mais afetivo. Nesse embate, o campo fundamentalista e conservador conseguiu ser mais efetivo.
Não estamos lidando com um grupo de pessoas vazias que serão conquistadas por quem chegar primeiro: há demandas diárias e afetivas.
É preciso saber andar junto e ouvir. Na medida em que esse espaço é dado, é possível construir caminhos alternativos.
Qual é a disposição do campo progressista em ouvir e aprender a partir das experiências da periferia e da capacidade de articulação, mobilização e solidariedade social das igrejas evangélicas?
Nos EUA existe uma tradição das igrejas evangélicas na luta antirracista. Por que essa proximidade não ocorre no Brasil?
Pacheco - Há uma diferença significativa e isso também tem a ver com a influência dos Estados Unidos em nossa formação evangélica.
As grandes igrejas conservadoras que vieram ao Brasil, principalmente presbiterianas e batistas, eram muito proselitistas, com missionários que tinham como objetivo conquistar territórios, salvar almas...
Não tivemos, no Brasil, a presença de missionários de igrejas negras americanas ? algumas delas têm mais de 210 anos. Eu congrego em uma igreja que tem 210 anos, formada por etíopes que tiveram sua participação na igreja batista negada.
Mas essas igrejas não tiveram interesse missionário de formar uma comunidade negra na América Latina.
Tenho esperança de mudança. Hoje temos movimentos mais fortes, com tolerância e diálogo inter-religioso. Já há uma agenda e uma teologia antirracista muito fortes.
Uma geração de jovens negros está interessada em ler Teologia Negra. Vejo como meu livro é procurado cada vez mais por jovens evangélicos negros que muitas vezes estão em igrejas tradicionais, com uma teologia ainda com ranço racista muito forte.
Há um movimento negro evangélico em crescimento, construindo alianças entre as igrejas. Estamos num caminho que considero interessante e promissor.
(Uol)
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