OPINIÃO DE AUGUSTO NUNES - Cabral se perdeu no Brasil
O país que presta adverte o ex-governador: seis anos de cadeia não curam o vício de roubar
Em 26 de fevereiro de 2019, preso havia três anos e condenado em diferentes processos a penas que somavam mais dois séculos na gaiola, o ex-governador Sérgio Cabral resolveu explicar por que se tornara um campeão da ladroagem em altíssima velocidade e um recordista na modalidade assalto em extensão: era portador de um tipo de disfunção ainda à espera de estudos científicos mais profundos. “Meu apego a poder e dinheiro é um vício”, resumiu durante a audiência com o juiz Marcelo Bretas, um dos integrantes da Lava Jato no Rio de Janeiro. Incapaz de livrar-se de tal dependência, Cabral garantiu ter feito o possível para ao menos reduzir o tamanho das pilantragens dela decorrentes. Ao instalar-se no Palácio Guanabara em 2006, por exemplo, comunicou a um dos maiores fornecedores da administração estadual na área da saúde que baixaria para 5% a propina paga ao governador a cada assinatura de contrato. “A tradição era ficar com 10%, 20%, até 30%”, gabou-se.
A ópera do malandro arrependido não funcionou. Nos três anos seguintes, sucessivas sentenças aplaudidas pelos brasileiros honestos ampliaram a temporada atrás das grades para 390 anos, o que promoveu Cabral a protagonista de uma proeza inverossímil. Nem o mais otimista dos comparsas achava possível a ultrapassagem do recorde estabelecido por Marcos Camacho, o Marcola. Delinquente desde o berçário, o comandante supremo do PCC, maior organização criminosa da América do Sul, foi condenado a 330 anos de cadeia. Sim, Cabral se mete em maracutaias desde os tempos de jovem deputado estadual. Mas bastaram as roubalheiras consumadas nos oito anos em que governou o Rio de Janeiro para que consolidasse uma vantagem de seis décadas à frente do formidável rival. Neste começo de primavera, o PCC segue colecionando planos para resgatar Marcola do presídio. O novo recordista está solto desde 17 de dezembro de 2022, quando a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal revogou a última prisão preventiva que o mantinha no xilindró.
No mesmo depoimento em que tentou transferir-se da penitenciária para uma clínica de recuperação, Cabral confessou, entre tantas outras bandalheiras, que eram dele os US$ 100 milhões depositados por dois doleiros em contas no exterior — até então à espera de um dono. O que disse confirmou que sabia muito sobre bandidagens envolvendo figurões dos três Poderes, a começar pelo ex-presidente Lula. Os inquisidores entenderam que ali havia um informante de grosso calibre pronto para abrir o bico. O STF enxergou o tamanho do perigo quando Cabral e a Polícia Federal começaram a desenhar o acordo de delação premiada. Sempre criativo, o Pretório Excelso tratou de demonstrar que sabe soltar criminosos confessos com a mesma desfaçatez e ligeireza com que persegue, prende e arrebenta inocentes que entram na mira da nada santa inquisição.
Autor do terceiro voto que sacramentou a soltura de Cabral, o ministro Gilmar Mendes caprichou na costura de uma chicana de fraque: “Não é o réu que está em julgamento, mas sim o pedido de revogação da prisão preventiva”, recitou. Segundo o atual decano, portanto, não foi Cabral o libertado: foi um desfile de consoantes e vogais, todas com movimentos tolhidos pela tornozeleira eletrônica, além das restrições de praxe. Porque assim quis o STF, um bandido juramentado recuperou o direito de ir e vir sem ter sido absolvido num único e escasso processo. A montanha de provas, indícios, evidências, confissões de nada valeu. Quase todos os processos foram considerados prescritos, outros não demorarão a ultrapassar o prazo de validade, alguns ainda se arrastam sem chances de conclusão.
Para camuflar a tapeação, jornalistas a serviço do STF comunicaram que Cabral trocara a gaiola pela prisão domiciliar, e que não escapara do fetiche predileto de Alexandre de Moraes: tornozeleira eletrônica. Conversa fiada, corrigiu o próprio Cabral em lives e entrevistas. “Estarei à disposição de qualquer candidato como consultor político”, avisou. Ou por falta de interessados, ou porque seis anos de prisão podem ser pouco para curá-lo do vício de roubar, já esqueceu a consultoria. Vídeos nas redes sociais reforçam a suspeita de que Cabral quer ser um influencer digital, mas ainda não encontrou o modelito adequado. Já o vi como entrevistado: desliguei ao vê-lo evocando a dura vida na cadeia com cara de pedinte. A voz de viúva inconsolável requeria ao menos duas lágrimas nos cantos dos olhos. Não vieram. Já o vi como entrevistador, ao lado da nova namorada, defendendo em sintonia com o entrevistado a liberação da maconha. Não só para fins medicinais. Ele também quer fumar um baseado “com a tranquilidade que se vê nas ruas de Montevidéu e nas cidades da Califórnia”. Ou nos pátios das cadeias brasileiras, acrescento.
Neste setembro, criou coragem para dar as caras numa academia de ginástica, numa festa de casamento organizada por um amigo e na orla de Copacabana. Na academia, pareceu feliz com o sumiço da barriga, demitida por exercícios na gaiola. Na festa de casamento, está com a cara do parente que descobre ter sido má ideia aparecer sem ter sido convidado. O vídeo que flagra a passagem por Copacabana recomenda aos gritos: fique mais tempo em casa, cara. O olhar assustadiço e as passadas ligeiras escancaram o medo de ser reconhecido. Um medo muito pertinente, confirma a chibatada verbal desferida por uma mulher: “Bandido solto, né, Cabral?”. Ouviu-se muito mais que uma voz. Ouviu-se o veredito do Brasil que pensa e presta.
(revistaoeste)
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