OPINIÃO DE J.R.GUZZO - A civilização do ministro Barroso | Notícias Tudo Aqui!

OPINIÃO DE J.R.GUZZO - A civilização do ministro Barroso

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O ministro e os seus colegas transformaram o Brasil, com suas sentenças públicas, numa espécie de Congo Belga jurídico, onde a segurança das leis foi trocada pela força bruta

 

O STF e o presidente Lula competem entre si num duelo sem precedentes na história política deste país: quem consegue arrastar mais vezes o Brasil para o fundo do poço. É uma disputa cabeça a cabeça. Uma hora o STF está na frente. Em outra hora Lula está atrás — ou então é o exato contrário disso, de maneira que até hoje não dá para dizer quem está ganhando e quem está perdendo. Um dos dois pode ser o cavalo de Gardel em Por Una Cabeza — aquele que afloja al llegar. Melhor não apostar nada nesse páreo, então, até porque pode ser declarado um empate técnico e inventarem uma “decisão judicial” declarando que foi você quem perdeu, mané.

Na última passagem pela grande curva, quem estava à frente era o STF — na figura do ministro Luís Roberto Barroso, o atual presidente da nossa “Suprema Corte”, como diz Lula quando imagina que o Palácio do Planalto é a Casa Branca. Em comemoração ao seu próprio primeiro ano no cargo, e num dos seus piores momentos no papel de comentarista de si mesmo, Barroso proclamou que o seu “legado” será a “total recivilização” do Brasil. Põe fundo do poço nisso. Quem disse, em primeiro lugar, que ele vai deixar algum tipo de legado? Até agora, ao que se saiba, só ele mesmo. E essa “recivilização”, o que seria, além de uma palavra pretensiosa, falsamente erudita e basicamente tola?

É a moda do “re”, em pleno avanço no campo que se acha “progressista”. Janja, por exemplo, disse que iria “ressignificar” a posição de primeira-dama na história geral da República. Barroso diz agora que vai “recivilizar” o Brasil. Como assim? O ministro quer que você acredite que o país vivia na barbárie até ele chegar à presidência do STF. É uma bobagem classe platinum plus extra magnum, que pode ser verificada em qualquer cartilha de curso primário. Muito pior, é uma afirmação mentirosa, neurótica e mal-intencionada. Se existe alguma coisa indiscutível na conduta do STF nos últimos cinco anos é exatamente o contrário: Barroso, Alexandre de Moraes etc. etc. etc. reduziram o Brasil a um estado de selvageria legal sacralizada.

Como já ocorreu em casos parecidos, a afirmação poderia ser sepultada no cemitério dos pensamentos mortos para onde se conduz diariamente a produção filosófica dos gatos gordos que você sustenta em Brasília. Neste último caso, entretanto, Barroso foi além da megalomania subdesenvolvida que hoje afeta os circuitos mentais dos dois concorrentes — Lula e os próprios ministros do STF. O ministro e os seus colegas transformaram o Brasil, com suas sentenças públicas, numa espécie de Congo Belga jurídico, onde a segurança das leis foi trocada pela força bruta — quem pode manter uma milícia armada mais eficaz que a do vizinho tem mais razão do que ele. Barroso chama isso de civilização.

É como ouvir aulas de Direito e de Ciência Política dadas pelo professor Idi Amin, ou por outros bandoleiros africanos que subiram ao status de “famosos” chefiando ditaduras de almanaque. O que o STF realmente fez no Brasil, sob o comando de Alexandre de Moraes e com a assistência de Antonio Dias Toffoli (em outro departamento), foi eliminar a pau, ao contrário do que diz Barroso, a condição fundamental para que qualquer sociedade receba o selo de “civilizada” — a segurança jurídica. É ela que obriga a autoridade pública a tomar todas as decisões com base no que está escrito na lei, e não naquilo que ela quer, ou no que acha “certo”.

Isso acabou no Brasil. Um cidadão, uma empresa ou seja lá quem for não pode mais ter a expectativa de que a Justiça lhe dará razão se demonstrar que está dentro da lei — da lei como ela está escrita, e não como o ministro Moraes acha que é. Ele acha, por exemplo, que no dia 8 de janeiro de 2023 tentaram dar um golpe de Estado usando estilingues, ou pintando de batom uma estátua em Brasília. Essa alucinação, como veio do STF, virou lei. Toffoli acha que todos os corruptos que confessaram seus crimes e devolveram dinheiro roubado nos governos Lula-Dilma, sem nenhuma exceção, são inocentes. Passa a ser a lei, também — e por aí vamos. É a “recivilização” do ministro Barroso.

O sistema judicial do Brasil presta obediência, hoje em dia, a uma safadeza-gigante inventada pelo STF: o “consequencialismo”, como dizem. De acordo com essa trapaça, que eles chamam de doutrina jurídica, a lei não deve mais ser aplicada segundo o que está escrito nos códigos legais. O Supremo, agora, deu-se o direito de tomar decisões levando em conta as “consequências” que podem decorrer da aplicação da lei — e são os ministros que decidem se essas consequências combinam com o que eles querem. Se combinam, vale a lei. Se não combinam, a lei não vale. Nada revela tão bem esse “avanço civilizatório” quanto o contrassenso de que cabe ao STF “interpretar” a Constituição e as leis.

O Supremo não tem o direito de “interpretar” nada — se “interpretar” estará, na prática, escrevendo a lei a cada decisão, e só o Congresso Nacional pode fazer leis no Brasil. Tem apenas a obrigação de estabelecer se isso ou aquilo é, ou não é, constitucional. Já é uma degeneração que o STF funcione como um juízo universal, que decide qualquer causa neste país, de morador de rua a atestado de vacina, e está sempre aberto para ouvir desocupados de esquerda que perdem votações. Para piorar, nomeou-se como “intérprete” das leis e da Constituição — ou seja, na prática, é quem decide se essa lei é “boa” ou “ruim”, e se vai ou não vai ser aplicada. O ministro Moraes, como de costume, foi quem definiu com mais precisão essa filosofia.

Numa de suas proclamações recentes, já avisou que a Lei da Anistia em apreciação no Congresso não vai valer — é “questão constitucional”, disse, e, portanto, é o STF quem decide. Ou melhor, ele mesmo, Moraes, para quem a anistia aos motoboys, manicures e encanadores presos no 8 de janeiro vai parar o movimento de translação da Terra. É assim que o Brasil está sendo “recivilizado” pelo ministro Barroso: a aprovação das leis tem de ser feita agora em dois estágios, para ficar com a qualidade garantida. No primeiro estágio, o Congresso aprova a lei. No segundo, Moraes, Toffoli, Barroso etc. etc. dizem se a lei aprovada vai valer ou não.

Nem Moraes nem os outros dois são os únicos envolvidos nessa evolução ao avesso que leva o Brasil de volta ao sistema judicial praticado durante o período Paleolítico — quando a lei era o que o hominídeo-alfa da caverna resolvia. O primeiro grande passo, como a descoberta do fogo, foi a anulação, sem qualquer julgamento de culpa ou de inocência, dos processos penais que tinham condenado Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Por causa disso, Lula saiu da situação de presidiário do sistema penal brasileiro para a Presidência da República, com escala nas eleições e nas urnas eletrônicas do TSE — e dali viemos caindo, sem parar, até aqui.

Moraes, de qualquer forma, é o nome-chave dessa “recivilização” que levou o Brasil ao mais agressivo período de ilegalidade bruta jamais registrado em sua história republicana — pior que o do regime militar de 1964 ou o da ditadura do Estado Novo. Num rápido vol d’oiseau sobre as conquistas que encantam o presidente Barroso, temos, para começar, o inquérito policial perpétuo (está a caminho de completar seis anos) que Moraes transformou em lei suprema do Brasil, em substituição à Constituição Federal. A partir daí foi só “descivilização”, direto na veia. De um minuto para outro, os 220 milhões de brasileiros perderam o direito universal de serem julgados na Justiça comum, com acesso a apelação da sentença. Caem direto na vara penal que ele criou no STF — e além do STF não há a quem recorrer.

O ministro Moraes anulou o direito ao julgamento individual; passou a condenar por lotes. Pune com até 17 anos de cadeia, pelo crime de “golpe de Estado”, pessoas presentes a um quebra-quebra em Brasília, mesmo que não tenham quebrado nada. Aplicou censura explícita, reconhecida pelo próprio STF, nas redes sociais e em veículos de comunicação, durante e depois das eleições de 2022. Impede que os advogados exerçam o direito de defesa plena de seus clientes. Alega que foi agredido no Aeroporto de Roma, não prova nada durante mais de um ano e exige que o acusado seja julgado no STF, por ele mesmo — ou por um outro qualquer, o que vai dar exatamente na mesma. Transformou prisão preventiva em prisão sem data para acabar.

No Brasil “recivilizado” de Barroso, um deputado federal, que não poderia ter sido preso, já cumpriu o período legal de sua prisão e pagou todas as multas que lhe foram aplicadas por Moraes, continua na cadeia. É um caso equivalente à situação de cárcere privado — a oubliette da Idade Média. Centenas de cidadãos estão condenados à tortura da tornozeleira eletrônica. Moraes não permitiu que um dos presos da baderna de Brasília recebesse tratamento hospitalar de urgência, apesar de atestados médicos e pedidos do próprio Ministério Público. O homem morreu no pátio da prisão. Há cidadãos indiciados em inquérito por darem sinais de “joinha” no WhatsApp. Barroso e seus colegas concordam com Moraes em cada uma dessas decisões.

Neste momento, e para ir ficando por aqui, a obra civilizatória do STF está na redução do Brasil ao estágio da Venezuela, Irã, Turcomenistão e outras ditaduras primitivas que proíbem a presença do X. A plataforma já cumpriu todas as exigências de Moraes e pagou todas as multas que foram impostas por ele — mas a cada exigência que cumpre, o ministro faz outra e, a cada multa que paga, ele inventa mais uma. A punição, na vida real, é para os 22 milhões de pessoas que não cometeram delito nenhum, nem mesmo os delitos que foram criados por Moraes — e estão impedidas de se expressar no X, ou ler o que está escrito ali. Pagam, como em tantos outros casos, por crimes que não existem na lei brasileira.

Dias Toffoli, por sua vez, faz o contrário. Destrói a lei extinguindo um dos piores crimes que pode existir em qualquer sociedade civilizada — a corrupção. É algo que, segundo as decisões do STF, não existe mais no Brasil. Talvez até exista no papel, mas Toffoli anula automaticamente todas as condenações por corrupção dos governos do PT. Na verdade, virou jurisprudência oficial da “Suprema Corte” do Brasil de hoje. Roubou o Erário, confessou o roubo e pagou multa para sair da cadeia? É só procurar o STF — o ministro Toffoli anula todas as condenações e devolve o seu dinheiro. O resultado disso é o seguinte fenômeno: o Brasil, que é um dos países mais corruptos do mundo pelos levantamentos das organizações internacionais de vigilância, não tem um único corrupto na prisão.

Moraes, Toffoli e o STF, com seu apoio cego aos dois, são uma negação ambulante das regras exigidas para um país ser considerado sério. Violam as leis do momento em que levantam da cama até o momento em que desligam os seus computadores. Que civilização é essa? É praticamente a mesma, do ponto de vista mental, que existia no tempo em que os índios caetés jantaram o bispo Sardinha — com a diferença, pelo menos, de que os caetés não cobravam o caminhão de impostos que o cidadão tem de pagar no Brasil do ministro Barroso, e que já está a caminho dos R$ 3 trilhões neste ano de 2024. Era um perigo, de fato, ser bispo naquela época. O problema, na atual civilização do STF, é que o bispo é sempre você.

A questão, no fim das contas, é mais simples do que um lírio do campo. O STF quer mesmo “recivilizar” o Brasil? Basta que ele pare de “descivilizar”, como faz sem parar há cinco anos, e restabeleça a situação que existia até o momento em que o ministro Barroso resolveu nos civilizar. Para as mentes que sempre enxergam propósitos secretamente virtuosos em tudo o que vem do STF, a última encíclica de seu presidente é um sinal positivo. Pelo menos ele não falou, como Moraes, que “falta muita gente para prender, falta muita gente para multar”. Parece satisfeito com a presente população da Papuda e com os milhões de multa já cobrados.

Mas, ao mesmo tempo, está avisando que qualquer “recivilização” só virá depois das eleições municipais — e esse “depois das eleições” não dá para animar ninguém, quando se leva em conta o valor que tem a palavra de um ministro do atual STF brasileiro. Na outra vez que falaram nisso, a ministra Cármen Lúcia prometeu que a censura iria durar “só” até o dia seguinte às eleições de 2022. No mundo das realidades Moraes proibiu, ainda há pouco, a Folha de S.Paulo de fazer uma entrevista — ou seja, estão censurando até o que não foi dito. Não é preciso dizer mais grande coisa sobre a nossa volta à civilização.

(revistaoeste)


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