OESTE: OPINIÃO DE SÍLVIO NAVARRO - Juízes de duas caras
Por que os ministros do Supremo mudaram tanto de opinião sobre censura, corrupção e defesa da Constituição?
Qual é o valor que você, falando a sério, dá à palavra do presidente do Supremo Tribunal Federal do seu país, o ministro Luís Roberto Barroso? E a palavra do ministro Gilmar Mendes — quanto valeria? A mesma pergunta se pode fazer em relação aos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Luiz Fux e mais ou menos todos os demais integrantes do tribunal de Justiça mais elevado do Brasil. A confiança na honradez pessoal de todos eles deveria estar acima de qualquer dúvida, por dois motivos básicos. O primeiro, que as pessoas decentes aprendem já durante a infância, ensina que o homem de bem não pode ter duas caras — dizer uma coisa hoje e o contrário amanhã. O segundo é que um juiz tem a obrigação de assumir a responsabilidade pelo que diz, e não pode ficar mudando de convicções conforme o seu interesse pessoal do momento. Não se trata de mudar de opinião, algo perfeitamente legítimo para qualquer pessoa que pensa. Trata-se, aqui, de mudar de posição moral, aquela que separa o certo do errado. Os ministros do STF têm mudado de opinião ou virado casaca? Não há nada melhor para descobrir isso do que ler e ouvir o que os próprios ministros disseram em público — não no passado remoto, mas já agora, em sua plena idade adulta.
O artigo a seguir apresenta ao leitor exatamente isso, palavra por palavra, sem mexer em uma sílaba. A Revista Oeste, por sinal, não tem absolutamente nada a ver com a conduta dos ministros, nem está fazendo julgamento de nada. Está apenas reproduzindo abaixo o que os próprios ministros disseram, por sua livre e espontânea vontade. Os únicos responsáveis são eles mesmos.
As falas foram extraídas de votos proferidos em plenário — quando os ministros se reuniam presencialmente —, no Supremo e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em entrevistas e sabatinas realizadas pelo Senado.
Os ministros falam sobre liberdade de expressão, defesa intransigente da Constituição e do devido processo legal, combate à corrupção e o que representou para o país a pilhagem dos cofres públicos ocorrida nos governos do PT — até os ventos mudarem, em março de 2019.
Foi nesse ano que o então presidente da Corte, Dias Toffoli, decidiu abrir um inquérito de ofício e indicar — sem o rito tradicional do sorteio, como diz o Regimento Interno — o relator: Alexandre de Moraes, recém-chegado ao tribunal, foi incumbido da missão de investigar a produção de fake news no Brasil. O inquérito foi etiquetado várias vezes, ganhou o apelido de “inquérito do fim do mundo” pelo decano à época, Marco Aurélio Mello, e tem o número 4.781.
Conhecido nos corredores de Brasília como inquérito-matriz, é o mais longevo de que se tem notícia, com mais de cinco anos. Foi instaurado a partir de postagens das redes sociais, sobretudo do X/Twitter, e de depoimentos dos ex-deputados Alexandre Frota (PDT) e Joice Hasselmann (Podemos) — ambos candidatos a vereador neste ano, ele no município de Cotia, ela na cidade de São Paulo. Os dois afirmaram que havia um “gabinete do ódio” comandado por aliados de Jair Bolsonaro para atacar o STF na internet.
“O objeto deste inquérito, conforme despacho de 19 de março de 2019, é a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito.“
(Inquérito nº 4.781, de 14 de março de 2019)
Os trechos abaixo reproduzem falas dos ministros que, se empenhadas em 2024, provavelmente mudariam os rumos do país sobre censura, o fim da Operação Lava Jato e o respeito aos freios e contrapesos da Praça dos Três Poderes.
Cármen Lúcia, em novembro de 2015, sobre o Mensalão:
“Na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal nº 470, o Mensalão, e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade, impunidade e corrupção. Não passarão sobre os juízes do Brasil. Não passarão sobre novas esperanças do povo brasileiro, porque a decepção não pode estancar a vontade de acertar no espaço público. Não passarão sobre a Constituição do Brasil.”
Em outubro de 2022, sobre censura prévia nas eleições:
“Este é um caso que em sede de liminar [decisão provisória] é extremamente grave, porque de fato temos uma jurisprudência do STF, na esteira da Constituição, no sentido do impedimento de qualquer forma de censura. E medidas como essas, mesmo em face de liminar, precisam ser tomadas como se fossem algo que pode ser um veneno ou um remédio. E neste caso, portanto, como se trata de liminar, e sem nenhum comprometimento quanto à inteireza de manutenção no exame que se seguirá, vou acompanhar, com todos os cuidados, o relator, incluindo a parte da alínea C [trecho que manda adiar a estreia do documentário da Brasil Paralelo] da decisão, que é a que me preocupa enormemente.”
Luiz Fux, em junho deste ano:
“Não se podem desconsiderar as críticas, em vozes mais ou menos nítidas e intensas, de que o Poder Judiciário estaria se ocupando de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservada apenas aos Poderes integrados por mandatários eleitos. Nós não somos juízes eleitos. O Brasil não tem governo de juízes.”
Gilmar Mendes, em setembro de 2015, sobre a Lava Jato:
“O que se instalou no País nesses últimos anos e está sendo revelado na Operação Lava Jato é um modelo de governança corrupta, algo que merece o nome claro de cleptocracia. Veja o que fizeram com a Petrobras, veja o valor da Petrobras hoje, por isso que se defende com tanta força as estatais. Não é por conta de dizer que as estatais pertencem ao povo brasileiro. Porque pertencem a eles. Eles tinham se tornado donos da Petrobras. Esse era o método de governança.”
Programa Roda Viva, em maio de 2023, ainda sobre a Lava Jato:
“As pessoas só eram soltas, liberadas, depois de confessarem e fazerem acordo. Isso é uma vergonha e nós não podemos ter esse tipo de ônus. Coisa de pervertidos. Claramente se tratava de prática de tortura usando o poder do Estado. São páginas que envergonham a Justiça.”
Luís Roberto Barroso, em abril de 2021:
“Na Itália, a corrupção conquistou a impunidade. Aqui, entre nós, ela quer vingança. Quer ir atrás dos procuradores e juízes que ousaram enfrentá-la. Para que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo. No Brasil, hoje, temos os que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível. Mas temos um lote muito pior, dos que não querem ficar honestos nem daqui para a frente, e que gostariam que tudo continuasse como sempre foi.”
Programa Roda Viva, em junho de 2020:
“O que aconteceu na Petrobras foi crime, não foi política. O que aconteceu na Eletrobras foi crime, o que aconteceu na Caixa Econômica Federal foi crime, o que aconteceu no crédito consignado foi crime, o que aconteceu nos fundos de pensão foi crime mesmo.”
Cristiano Zanin, ainda advogado, em junho de 2021:
“O que eu vi foi estarrecedor. Vínhamos afirmando a existência de um consórcio, de um conluio. Apontamos a prática de diversos atos ilegais. Mas o conteúdo daqueles diálogos, que eu reputo como atos processuais clandestinos, é bastante chocante. Nós vimos ali como a Justiça não deve ser utilizada, como os agentes do Sistema de Justiça não podem usar o poder do Estado para atingir objetivos políticos, pessoais, dentre outras coisas.”
André Mendonça, durante sabatina no Senado, em dezembro de 2021:
“Reafirmo meu irrestrito compromisso com o Estado Democrático de Direito, conforme expresso desde o preâmbulo da nossa Constituição. Dentro dessa perspectiva, inclui-se o compromisso de respeitar as instituições democráticas, em especial a independência e harmonia entre os Poderes da República. Esse preceito constitucional está inserido dentro do sistema de freios e contrapesos, próprios ao Estado Democrático de Direito.”
Nunes Marques, em sabatina no Senado, em outubro de 2020:
“O Poder Judiciário cuida do passado, o Congresso, do futuro. O Poder Judiciário cuida do ontem, o Poder Legislativo, do amanhã.”
Edson Fachin, em maio de 2015, durante sabatina no Senado, em meio a lágrimas:
“Sobrevivi fazendo crítica e autocrítica. Sempre acreditei que os valores da família, da Pátria e da Nação são primordiais.”
Fachin, em fevereiro deste ano, a favor do aborto sem amparo legal:
“O quadro narrado pelas requerentes é bastante grave e parece apontar para um padrão de violação sistemática do direito das mulheres. Se nem mesmo as ações que são autorizadas por lei contam com o apoio e acolhimento por parte do Estado, é difícil imaginar que a longa história de desigualdade entre homens e mulheres possa um dia ser mitigada.”
Alexandre de Moraes, ministro da Justiça de Michel Temer, sobre o PT:
“Nosso simpatizante aqui do governo corrupto, que foi colocado para fora do Brasil pela corrupção, pela falta de vergonha na cara, de quem roubava bilhões. Se, em vez de roubar bilhões, tivesse investido na segurança, se, em vez de desviar dinheiro para construir porto em Cuba, tivesse investido em presídio, estaríamos muito melhor.”
Sobre o direito ao indulto presidencial, em 2018:
“O ato de clemência constitucional é privativo do presidente da República, gostemos ou não. Não desrespeita a separação de Poderes.”
Sobre o mesmo direito ao indulto presidencial, em 2022, concedido ao então deputado Daniel Silveira:
“O Poder Judiciário tem o dever de analisar se as normas contidas no decreto de indulto, no exercício do caráter discricionário do presidente da República, estão vinculadas ao império constitucional.”
Sobre a censura, em junho de 2020:
“A decisão judicial impôs censura prévia, cujo traço marcante é o caráter preventivo e abstrato de restrição à livre manifestação de pensamento, que é repelida frontalmente pelo texto constitucional, em virtude de sua finalidade antidemocrática.”
Já em 13 de dezembro de 2023, as coisas mudaram significativamente com o ex-militante comunista Flávio Dino. “A liberdade de expressão não é plena. Pode e deve ser modelada de acordo com as circunstâncias”, disse aos senadores. Já estava em curso o consórcio de governo Lula-STF e o conceito de “democracia relativa”, segundo o petista.
Em relação ao ministro Dias Toffoli, que detém a paternidade do inquérito-matriz no STF, nenhuma declaração sobre a defesa das liberdades individuais ou o combate à corrupção é lembrada. Pelo contrário, ao determinar a destruição dos arquivos de corrupção, disse que a prisão de Lula em 2018 foi uma “armação”, e que a Lava Jato fez uso de “tortura psicológica, um pau de arara do século 21, para obter provas contra inocentes”. Ele foi o primeiro a afirmar que o Judiciário é o Poder Moderador do país, algo que não está escrito na Constituição de 1988, mas, sim, na de 1824, em benefício do imperador Dom Pedro II.
Essas são algumas das centenas de manifestações dos ministros que, se não tivessem mudado radicalmente suas próprias convicções, permitiriam ao país sair do buraco que se enfiou nos últimos anos. A pergunta que permanece sem resposta é: por que eles mudaram tanto?
(revistaoeste)
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