Notável e ilibado



O Supremo arrogou-se poderes e os exerce, acima da Constituição, ante o encolhimento de deputados e senadores que têm contas a pagar na Justiça

Francisco Mairlon Barros Aguiar acaba de deixar o presídio da Papuda. Tinha 22 anos quando foi preso, condenado a 47 anos, pelas mortes do casal Maria e José Guilherme Villela e a empregada deles. Villela foi advogado de Collor no impeachment e ex-ministro do TSE. Marcou-me muito a morte do casal, pois dias antes, em Paris, era nossa companhia num passeio de bateau-mouche no Sena. Agora o Superior Tribunal de Justiça trancou a ação penal. O irmão e a irmã do condenado cursaram Direito para se tornarem advogados de Mairlon e conseguiram apoio da advogada Dora Cavalcanti, fundadora da ONG Innocence Project no Brasil. Não havia provas e a condenação se baseou em conversas extrajudiciais e delações em sede policial, sob coação e sem confirmação em juízo. Preso, não viu seu filho nascer. O menino está com 15 anos e a mãe está com outro. Impossível devolver o que o erro causou.

No mesmo dia da decisão do STJ interrompendo um erro judicial, o procurador-geral da República alertou o ministro Moraes do erro que fez Divânio Natal Gonçalves passar seis meses na cadeia. Divânio é uma das vítimas da manifestação do 8 de janeiro. Estava em casa, de tornozeleira, quando foi buscado pela polícia. Havia um mandado de prisão emitido por Alexandre de Moraes, alegando que ele teve “um comportamento desafiador de desrespeito a esta Suprema Corte, com rompimento da tornozeleira e fuga de casa”. Repito: ele estava em casa e com tornozeleira, quando foi levado para a prisão. Descobriu-se depois que um funcionário da Justiça em Uberlândia, da Vara em que ele se apresentava semanalmente no 3º andar, mandou que ele passasse a se apresentar na Vara no 1º andar, o que Divânio passou a fazer regularmente. A defesa de Divânio, que ficou seis meses atrás das grades, chama isso de “erro diabólico”.

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São dois erros interrompidos no mesmo dia, que não podem ser compensados. E há erros judiciais continuados desde 14 de março de 2019, quando o então presidente do Supremo, Dias Toffoli, inventou a ação que o ministro Marco Aurélio Mello batizou de “Inquérito do Fim-do-Mundo”. Tudo que sai dele poderá um dia ser interrompido como os dois erros acima? Se for, como compensar o tempo extinto nas vidas? Mairlon, condenado sem provas e com base numa delação sob coação, é muito semelhante ao que vimos recentemente, desnudado pelo voto do ministro Fux. Irão, no futuro, os amantes do Direito, chamar tudo o que se tem testemunhado de “erro diabólico”? Haverá sabedoria e humildade no STF para reconhecer o erro de trocar isenção por ativismo? O ministro Barroso deserta, mas registrou o diagnóstico do que afeta o tribunal. O Supremo deixa de ser um departamento técnico do Judiciário para ser um tribunal político. E, na suposição de que Bolsonaro daria um golpe, anteciparam-se com um contragolpe, mobilizando TSE, STF e aliados no Congresso.

Irão, no futuro, os amantes do Direito, chamar tudo o que se tem testemunhado de “erro diabólico”? Haverá sabedoria e humildade no STF para reconhecer o erro de trocar isenção por ativismo?

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Agora Barroso abre vaga. Lula diz, brincando com os neurônios de todos, que não vai nomear um amigo, mas um defensor da Constituição, acrescentando que assim procedeu em todas as indicações. Recebeu esta semana para jantar quatro ministros do Supremo — Gilmar, Moraes, Dino e Zanin — e consta que eles sugeriram que não deva ser um nome fraco, para não enfraquecer o Supremo. Penso que, assim sendo, o critério afasta os nomes cotados até agora. Não há ninguém parecido com Moreira Alves, Djaci Falcão, Oscar Dias Correia, Thompson Flores — só para lembrar alguns dos que passaram pelo Supremo em meus tempos de reportar grandes julgamentos. Será que não há juízes brilhantes e experientes em tribunais superiores?

Será que o País ainda suporta tanta insegurança jurídica, tanta consequência negativa no Poder Judiciário ante o exemplo de cima, de arbítrio e descaso com a Constituição? Os jornais falam de ocupar a vaga com uma mulher negra, como se fosse uma questão de sexo e etnia. Como se a aparência tivesse importância. Não é o que diz a Constituição. A Lei Maior exige mais de 35 anos e menos de 70, notável saber jurídico e reputação ilibada. Não fala em sexo nem cor da pele; ao contrário, no art. 5º, afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O País não quer nomes fracos; impossível que não tenhamos juristas de porte, como Ives Gandra Martins (que já passou dos 70), ou como Sobral Pinto — já imaginaram no Supremo um segundo Rui Barbosa?

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O Supremo está em último lugar no segundo artigo da Constituição que consagra os três Poderes. Porque não é poder político, oriundo da representatividade do voto. É técnico mesmo. Mas arrogou-se poderes e os exerce, acima da Constituição, ante o encolhimento de deputados e senadores que têm contas a pagar na Justiça. Culpa da indiferença do critério do eleitor, que vota em quem está pendurado em tribunal. Quem deve, teme. Agora o Supremo é protagonista de um desastre no Estado de Direito, a ponto de provocar punições por desrespeito a direitos humanos, de lei americana — e com a omissão cúmplice de presidentes do Senado. A escolha do substituto de Barroso pode atenuar a situação ou piorá-la. Vai estar nas mãos dos senadores. A começar pela sabatina na Comissão de Constituição e Justiça. Comprovada a idade, o critério é “notável saber jurídico” junto com “reputação ilibada”. Depois, o voto secreto em plenário. Se uma má indicação presidencial passar pelo filtro de maioria absoluta do Senado, o último responsável pela piora será o Senado.

(revistaoeste)




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