
A polêmica em torno da extensão da Terra Indígena (TI) Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, é resultado de uma sucessão de decisões administrativas tomadas por diferentes governos federais ao longo de quase meio século.
No cerne do embate está a acusação de ilegalidade na ampliação da área originalmente demarcada, que, segundo colonos da região, teria avançado sobre assentamentos rurais legalizados pelo Incra ainda na década de 1980. O caso tornou-se símbolo da insegurança fundiária crônica no estado, onde o avanço das fronteiras agrícolas e a preservação dos territórios indígenas seguem em rota de colisão.
Da criação do parque à terra indígena
O ponto de partida do conflito remonta a 1979, quando o então governo federal criou o Parque Nacional de Pacaás Novos, pelo Decreto nº 84.019, delimitando uma área de 764 mil hectares. Seis anos depois, em 1985, o Decreto nº 91.416 redefiniu a mesma região como área de ocupação indígena dos Uru-Eu-Wau-Wau, determinando à Funai a demarcação dos limites.
No entanto, o processo foi interrompido em 1990 pelo Decreto nº 98.894, que revogou o anterior e exigiu novos estudos técnicos para delimitar corretamente a área. O resultado foi o Decreto nº 275, de 29 de outubro de 1991, que homologou oficialmente a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, agora com 1.867.117 hectares — mais do que o dobro da área original do parque nacional.
Essa ampliação gerou uma sobreposição territorial com o projeto de colonização Gleba Novo Destino, no município de Alta Floresta D’Oeste. Moradores afirmam possuir títulos de propriedade emitidos pelo Incra, mas documentos oficiais apontam que os mais antigos datam de maio de 1991, o que indica que a emissão ocorreu após a homologação da terra indígena.
O marco da discórdia
A disputa ganhou contornos técnicos com a controvérsia em torno do chamado “marco 26”, um dos pontos de referência da demarcação. Perícias apontam que o marco físico estaria deslocado 3,6 quilômetros da localização descrita originalmente — na margem direita do Igarapé Norte-Sul — embora permaneça dentro da delimitação geográfica legal da TI.
A Funai sustenta que os limites foram definidos com base em estudos antropológicos e cartográficos que comprovam a ocupação tradicional indígena na região. Já os colonos argumentam que o deslocamento do marco alterou indevidamente a fronteira, incorporando áreas que seriam parte de projetos de assentamento rural.
Do ponto de vista jurídico, o Poder Judiciário pode apenas verificar a legalidade dos atos administrativos, sem revisar o mérito técnico da delimitação. Assim, o impasse persiste em um limbo entre o campo técnico e o político.
Décadas de descontinuidade e descaso
Desde então, a região vive um ciclo de omissões governamentais. Nenhuma gestão federal ou estadual apresentou um plano de regularização fundiária definitivo para as áreas sobrepostas. A ausência de coordenação entre Funai, Incra e Ibama resultou em autorizações conflitantes, contribuindo para um cenário de insegurança tanto para indígenas quanto para assentados.
Enquanto a Funai defende a integridade da demarcação, o Incra — em diferentes períodos — chegou a reconhecer títulos em zonas contestadas. Essa falta de sintonia criou um vácuo institucional, alimentando disputas judiciais, tensões sociais e episódios de violência.
Exploração ilegal e omissão estatal
O vácuo administrativo abriu espaço para invasões, garimpo e exploração ilegal de madeira, práticas que degradam o meio ambiente e ameaçam as comunidades tradicionais. Relatórios ambientais mostram que a TI Uru-Eu-Wau-Wau é uma das mais pressionadas da Amazônia, com registros constantes de desmatamento em áreas limítrofes.
A falta de ação do Estado, portanto, não é neutra — ela tem efeitos concretos sobre a floresta e sobre as pessoas que dependem dela. De um lado, indígenas e ambientalistas denunciam violações de direitos; de outro, colonos reivindicam indenizações e regularização fundiária.
Disputa politizada e guerra de narrativas
Nos últimos anos, o debate ressurgiu em um contexto de polarização política, transformando-se em instrumento de propaganda eleitoral. Lideranças partidárias e parlamentares locais passaram a usar o tema como bandeira ideológica, ora criticando a Funai, ora associando a defesa indígena a discursos ambientais globais.
Em vez de uma política pública estruturada, o que se vê é uma sucessão de discursos inflamados, vídeos e pronunciamentos feitos para redes sociais. O debate técnico foi substituído pela retórica de confronto — e o resultado é a perpetuação do impasse.
Quarenta anos depois, o impasse continua
Mais de quatro décadas após o início da disputa, a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau segue como um símbolo da incapacidade estatal de conciliar preservação ambiental, direitos originários e políticas agrárias.
Enquanto índios e colonos permanecem em pé de guerra, as instituições responsáveis — Funai, Incra, Ibama e o próprio Judiciário — continuam divididas e inertes.
O caso revela, em última instância, o fracasso histórico do poder público em gerir o território amazônico. A floresta, as comunidades e o futuro da região seguem à espera de uma solução que, até agora, nenhum governo teve coragem de enfrentar com seriedade e compromisso.
Fonte: noticiastudoaqui.com