CRÔNICA DE FIM DE SEMANA - FOME, A MADRASTA DO MAL - Arimar Souza de Sá
A fome, madrasta do mal, dia após dia lapida-se na pedra bruta da indiferença humana. Diria o economista – uma simples questão de escassez. Palpita o padre – é a avareza dos ricos. Afirma o sociólogo – uma simples questão social. Discutem “salutarmente” os ricos – é uma determinante necessária na tabulação do equilíbrio da oferta e da procura.
Distante, porém, dessa trincheira de palpiteiros, a brasileira mãe não diz nada, apenas chora com a sentida ausência do feijão na panela. Fome, enfim, no “país sem pobreza” da filósofa Dilma Roussef, sempre sinalizou o óbvio: a compra antecipada de votos via “bolsas-esmola” e, nos canteiros de obras – quando as há – mão de obra barata e disponível no mercado.
Na realidade, a fome, que ainda faz folia nos dias atuais, não é mais endêmica, já se tornou epidêmica, é traiçoeira, mesquinha, covarde, “monstrenga”. Dir-se-ia, com respeitável convicção: – A besta está solta mesmo!
Senão, vejamos: No cotidiano brutal, cruzamos indiferentes, nas ruas e guetos do país, com uma multidão de famintos, a mendigarem ao menos um pedaço de pão ou uma moedinha. Nos restaurantes, o resto de comida. Nas portas dos supermercados, sempre “passam batidos”, aos nossos olhos, aqueles seres de alma trapilha, pedindo um trocado para comer, ou “mariscando”, nas latas de lixo, o ainda aproveitável, enquanto que no Nordeste ratos já deram até ibope na TV, por integrarem o cardápio dos tais excluídos.
Mas o que mais incomoda são os governantes, estrelas ou gestores desse “ocaso”, não se animarem em tomar uma posição séria e responsável com vistas a dizimar esse mal, muito embora o façam objeto de campanha nos palanques para, nos dias que se seguem à posse, mandarem o assunto para arquivamento nas prateleiras do descaso.
O primeiro ensaio sobre a fome, de que tomei conhecimento, tirante a imensa e eterna fotografia do nordeste, surgiu ali por volta da década de 60, quando o médico e escritor Josué de Castro, do alto de suas pesquisas científicas, ganhou banimento ao lançar a obra “Sete Palmos de Terra e um Caixão”, de 1965, onde focava as tensões sociais, paridas pela fome, na região.
Outros, como Miguel Arraes, ainda se animaram a debater o tema, mas também foram premiados com o exílio, enquanto por aqui a violência se consagrava com a boina verde oliva, como a forma mais ardilosa e covarde de assassinar inteligências.
Não obstante, nas ruas do Brasil de hoje, o grande filme da fome – ao contrário da recente afirmação do presidente – ainda se encontra em cartaz, estrelado por pequenos e grandes atores, e pintado por artistas, nos muros do País, com as penas da tragédia e as tintas da ironia.
Na verdade esses atores, que têm como palco o relento, poderiam, os pequenos, “se apresentar” nas escolas, e os outros, os maiores, nos postos de trabalho, ganhando com dignidade o pão nosso de cada dia, mas são empurrados para se alimentar das migalhas que a sociedade descarta nas latas de lixo.
No cruel estágio a que esses meninos são coagidos por todos nós, inicialmente eles atuam no “papel” de pedintes, depois de trombadinhas, mais tarde trombadões, latrocidas, e finalmente nos cárceres, professores da criminalidade.
Desses brasileiros, homens, mulheres e crianças abandonados, com fome, órfãos do destino, desnutridos, sem esperança, sem família, sem pátria e sem Deus, as ruas do país estão cheias – pena, mesmo, é que o presidente ainda não tenha percebido.
Ora, basta tirarmos os olhos do umbigo e veremos que as cidades desse país de meu Deus, estão repletas daquilo que a burguesia chama de “lixo social”: multidões de seres famintos mendigando ao menos um pedaço de pão, e tendo como teto, nas noites de verão, apenas as estrelas do céu – e no inverno amazônico, os guetos, as marquises, os prédios abandonados, os vãos das ruas e os viadutos, carregando sobre os ombros o peso das circunstâncias da vida que levam.
De certo, nesse luto, não existem viúvos – apenas órfãos – pois a fome é implacável como a lepra, dilacera sem dó nem piedade não só o corpo, mas a mente humana e, por conseqüência, o tecido social, transformando o homem num sonho pálido do que poderia ser, ou num simples fantasma de papel.
Que Deus ilumine o presidente Bolsonaro, para que ele deixe de “palpitar” em questões pequenas, abrace as grandes e admita que existe, sim, fome no Brasil – e da braba – e trate de dizimá-la com programas vigorosos de segurança alimentar com restabelecimento do pleno emprego e universalizando seu alcance social.
Senão, ao contrário do que disse, cidadãos de todas as idades, homens, mulheres e crianças, famintos, hoje, como antes, ainda continuarão nas ruas “garimpando”, por falta de opção, um pouco de comida nas latas de lixo.
Essa gente, presidente, como outros brasileiros, tem também o direito de sonhar e viver um amanhã mais iluminado e menos sofrido.
AMÉM
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