PORTO VELHO DE ONTEM E DE HOJE - Por Arimar Souza de Sá
Antigamente era assim: quando o trem apitava na Estação da Madeira Mamoré, a cidade ainda dormia ou acordava. Tinha pouca luz nas ruas, nas casas, dormia-se com as janelas abertas, mas não havia registro de criminalidade.
Asfalto nem se falava e, no reino dos lares, o respeito aos pais, a paz e o sorriso faziam folia.
Porto Velho não era mais do que isso: Uma cidade pequena e pacata, uma linha de ferro, barcos subindo e descendo o Rio Madeira, levando e trazendo esperanças. “Lá pras bandas de cima”, como diria o caboclo, transportando a borracha, sernambi, poaia e a castanha, vinham. “Eita tempo de cabra macho”.
O cenário amazônico de belezas naturais tinha o tom forte das matas virgens, onde o bicho preguiça, de quando em vez, se esgueirava em uma árvore qualquer, desafiando o tempo e o trabalho.
Papagaios, araras e curicas, em bando, confundiam-se com o verde da floresta. Bastava sair dos limites da cidade que ficava ali pelo Mercado do Km 1 e lá vinham todos, sob o embalo solto das espécimes em festa: o caititu, o veado (da selva é claro), a anta, o tatu, a cotia, a paca e, de quebra, algumas sucuris e a “papagaia”, a famosa cobra voadora.
Dos índios nem se fala!. Aqui e acolá, lá para os lados de Periquitos e Arara, na Estrada de Guajará, ouvia-se falar de um flechada certeira, de um grito no mato, de um homem no chão, do ranger de dentes e da tristeza pela dor do herói que se foi.
Não obstante, os índios e a bicharada sempre em festa, Porto Velho era um pouso de ternuras na qual o santuário sagrado era a própria família.
Tempos bons aqueles, quando se curtia em delírio as manhãs de sol na quadra do Ferroviário e os filmes do cine Reski. No Estádio Aluízio Ferreira, as rivalidades das torcidas do Moto Clube, Flamengo, Botafogo, São Domingos, Vasco, Cruzeiro, “Ferrim” e Ipiranga...
Lembranças do Colégio Dom Bosco e das meninas do colégio Maria Auxiliadora, a desfilarem de azul e branco, bonitas e puras como as águas no tempo do inverno. Da Escola Samaritana, onde passei a infância, hoje fechada sem protesto. Do Danúbio azul, do Bancrévea, clube da elite, onde aportava, em puro linho, a fina flor da “rapiocagem” da época.
Da Casa Saudade, o ponto chique da moda. Na hora do almoço, Ronaldo Medeiros apresentava o teatrinho infantil pelas ondas da Rádio Caiari; e nas manhãs e tardes dos dias de semana, lá estavam apostos no microfone, Antonio Fonseca, Edinho Marques, José Bonifácio e Luiz Augusto, a encherem os lares porto-velhenses com suas verves musicais. Como era bom!
Saudades do Porto Velho Hotel (hoje Unir centro). Dos encontros estudantis, da litorina e dos cassacos, dos banhos de igarapés, do catecismo do Padre Mário, brabo à beça. Do pioneirismo dos jornais “O Alto Madeira” e “O Guaporé”. Fatos viravam notícias em cima da pinta, apesar da incipiência do momento.
Memórias das missas aos domingos na Catedral, dos fantásticos sermões de Dom João Batista Costa e do sacristão “Beleza”, batendo o sino e induzindo a garotada a assistir a missa quieta.
Das festas de gala, da calça de Lino branco, engomada, estalando; da Baixa do União e do time do União, que depois se tornou Botafogo Futebol Clube, onde meu pai, (seu Ary do Carmo), era um dos dirigentes, deixando marcas cravadas no esporte das multidões.
Lembremos do primeiro conjunto musical: João Miguel, no Sax, Manga Rosa, no Trombone e o Adamor na bateria. Do supermercado Teixeira (o primeiro da cidade) e do seu Teixeira, ali, na porta, recepcionando seus clientes com ternura. Tudo passou célere mas era um mundo de sonhos.
Veio ambição. O ouro, a cassiterita, a madeira, os homens de todos os lados feito andorinhas de arribação. A dobra dos costumes e o costume da dobra. O “convento” da Anita voava. Com o tempo, “Anitas”, tantas, apareciam e desapareciam, era a dança da modernidade da porto-velhense.
E Porto Velho de hoje, desprezada pela “desgovernança”, acabrunhou-se. Virou o fel, o feio, o azedo, o ciúme, o enxofre, o passo, a senda, a Capital que mudou para pior. Ave Maria!
Com a violência: assaltos, roubos, furtos, sequestros, maus costumes, drogas, vícios todos, hoje somos praticamente prisioneiros dos nossos próprios lares. As grades das nossas casas já lambem o teto do céu. Nos quintais, feras adestradas e famintas estão prontas para devorar.
Porto Velho hoje, sem o amor dos governantes, é o medo, é o tiro, mais um no escuro, mais uma vida que se foi.
É a pressa, os acidentes no trânsito e a dor nos hospitais. Gente, que gente, que multidão, que vai e que vem. Um pouco de muito, um muito de nada, o ambiente tenso, pesado, chumbado, pintado com as cores horrendas do drama social.
E tudo isso é obra ambição dos incautos, que vai trazendo coisas, levando outras. Trazendo as coisas dos homens, levando as coisas de Deus. Tipo assim, solapando um pouco de ternura da velha Porto Velho e deixando ali, enganchada com o carretel e a pipa de nossa imaginação em algum lugarzinho do céu.
Deixando-nos órfãos, sentados, chupando dedo, curtindo a perplexidade. Lembrando com saudades do Porto Velho de ontem e correndo com medo dos marginais, protagonistas das cenas de horror do Porto Velho de hoje.
Que pena! Porto Velho de ontem, nunca mais! AMÉM.
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