A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu nesta sexta-feira (27/6) por seis votos a três limitar a autoridade dos juízes de instâncias inferiores para bloquear ordens do presidente Donald Trump em todo o país.
Trump classificou a decisão como uma "vitória monumental", e a procuradora-geral (equivalente à Advocacia-geral da União no Brasil), Pam Bondi, afirmou que o "interminável fluxo" de medidas cautelares contra o presidente será interrompido.
O caso tem origem na ordem do presidente Trump de eliminar o direito constitucional à cidadania por nascimento para filhos de imigrantes em situação irregular. A decisão da Justiça entrará em vigor dentro de 30 dias.
A Suprema Corte é dominada por uma maioria conservadora, e Trump nomeou três dos nove juízes — Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett.
Em sua opinião, que divergiu da maioria, a juíza Sonia Sotomayor argumentou que a decisão é um "convite aberto para que o governo burlar a Constituição".
Na prática, a decisão permite a entrada em vigor parcial do decreto que põe fim à cidadania automática para filhos de imigrantes em situação irregular, mas não resolve sua constitucionalidade.
A cidadania por nascimento é garantida pela 14ª Emenda da Constituição americana, assim, o debate jurídico de fundo sobre o tema provavelmente continuará e a própria corte terá que decidir sobre ele no futuro.
Trump celebrou a decisão em uma coletiva de imprensa. O presidente afirmou que foi uma "vitória monumental para a Constituição, a separação de poderes e o Estado de Direito".
Ele disse ainda que, nos últimos meses, "juízes radicais de esquerda" tentaram anular seus poderes, acrescentando que liminares com alcance nacional eram uma "grave ameaça à democracia".
Trump agradeceu à Suprema Corte e, em seguida, a cada juiz por sua decisão e afirmou que entrará imediatamente com o pedido para derrubar inúmeras liminares que suspenderam os efeitos de seus atos.
"Agora podemos prosseguir com políticas que foram indevidamente suspensas", acrescentou.
Ele mencionou especificamente a cidadania por nascimento e disse que ela "era destinada aos bebês de escravos", acrescentando que não se aplica às circunstâncias atuais.
Mais cedo, pelas redes sociais, Trump declarou que o uso desta regra para os imigrantes era uma "fraude".
O que diz a decisão da Suprema Corte?
A Suprema Corte dos EUA ainda não avaliou o mérito da ação que discute a constitucionalidade do decreto de Trump sobre a cidadania por nascimento.
Isso deve ocorrer apenas em outubro, segundo disse Pam Bondi a jornalistas na coletiva de imprensa.
Na decisão tomada agora, os juízes da mais alta instância da Justiça americana se debruçaram sobre a possibilidade de um único juiz federal impedir que uma ordem do presidente americano entre em vigor em todo o país.
Essa era uma questão que há muito tempo preocupava juízes da Suprema Corte de todo o espectro ideológico.
O governo Trump argumentou que os juízes extrapolaram seus poderes, alegando que o caso não justifica a "medida extraordinária" de um bloqueio nacional a uma medida da Casa Branca.
Críticos desse tipo de liminar argumentam que um juiz não deveria poder decidir unilateralmente sobre as políticas para todo o país.
As liminares também são criticadas por permitirem o que é conhecido como "shopping de foro" — a prática de ajuizar uma ação em uma jurisdição onde uma decisão favorável é mais provável.
Já os defensores desse tipo de ato afirmam que as liminares são necessárias para evitar o "caos", porque permitiriam uma consistência na aplicação das leis federais e não deixam o ônus da proteção de direitos a cargo de ações individuais na Justiça, e também serviriam para conter abusos do Executivo.
No caso da cidadania por nascimento, os advogados que se opõem ao governo Trump afirmaram a ausência de uma liminar nacional criaria um sistema de cidadania fragmentado no país.
Na decisão desta sexta-feira a favor de Trump, os juízes conservadores enfatizaram que não estavam abordando os méritos da tentativa de Trump de acabar com a cidadania por nascimento para não cidadãos e migrantes sem documentos.
O tribunal concluiu que as liminares devem ser limitadas aos demandantes que processam o governo — elas não podem ser aplicadas de forma ampla em todo o país, como tem sido o caso.
Em seu parecer a favor do governo, em nome da maioria da Corte, o juiz Brett Kavanaugh apontou que o volume de litígios envolvendo liminares e outros processos sobre novas leis federais e ações executivas que chegam à Suprema Corte tem crescido nos últimos anos.
"Essa tendência é, em parte, resultado do número crescente de novas ações executivas importantes por governos presidenciais recentes (de ambos os partidos políticos) que têm tido dificuldade em aprovar novas leis significativas no Congresso", disse Kavanaugh.

Kavanaugh acrescentou que "decidir sobre esses pedidos não é uma distração do nosso trabalho. É uma parte essencial do nosso trabalho".
O juiz afirmou que "os tribunais distritais não podem mais conceder medidas provisórias nacionais ou coletivas, exceto quando tal medida for legalmente autorizada".
"Os tribunais federais não exercem a supervisão geral do Poder Executivo; eles resolvem casos e controvérsias de acordo com a autoridade que o Congresso lhes conferiu. Quando um tribunal conclui que o Poder Executivo agiu ilegalmente, a resposta não é que o tribunal também exceda seu poder."
Ele prosseguiu afirmando que a Suprema Corte, "e não os tribunais distritais ou de apelação, muitas vezes ainda será a autoridade máxima para decidir sobre o status legal provisório de novos estatutos federais e ações executivas importantes".
No documento de 119 páginas, a juíza Sonia Sotomayor, a mais liberal da Corte, apresentou um voto divergente, com a participação das juízas Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson.
"A decisão do Tribunal nada mais é do que um convite aberto ao governo para burlar a Constituição", disse a juíza em seu voto.

"O Estado de Direito não é algo dado nesta nação, nem em nenhuma outra. É um preceito da nossa democracia que só perdurará se aqueles que forem corajosos o suficiente em todos os seus aspectos lutarem pela sua sobrevivência", prosseguiu.
"Hoje, o Tribunal abdica do seu papel vital nesse esforço. Com um golpe de caneta, o presidente fez uma 'zombaria solene' da nossa Constituição. A manipulação neste pedido é evidente, e o governo não faz qualquer tentativa de ocultá-la. No entanto, vergonhosamente, este Tribunal colabora."
Sotomayor acrescentou que "como todas as fontes concebíveis de direito confirmam, a cidadania por nascimento é a lei do país".
"Essa decisão torna as garantias constitucionais significativas apenas nominalmente para quaisquer indivíduos que não sejam partes em um processo judicial. Como não serei cúmplice de um ataque tão grave ao nosso sistema jurídico, discordo", escreveu a juíza.
"Uma maioria que repetidamente jurou fidelidade à 'história e à tradição' elimina, assim, um poder equitativo firmemente fundamentado em séculos de princípios e práticas equitativas. Ao destituir todos os tribunais federais, incluindo o próprio, desse poder, o Tribunal restringe a autoridade do Judiciário de impedir o Executivo de aplicar até mesmo as políticas mais inconstitucionais."
Quando a decisão passa a valer e quais seus efeitos?
Em sua decisão, a Suprema Corte permitiu que a ordem executiva de Donald Trump para encerrar a cidadania por direito de nascimento entre em vigor daqui a um mês.
No entanto, haverá provavelmente consequências imediatas, pontua Anthony Zurcher, correspondente da BBC nos Estados Unidos.
"Os tribunais ainda poderão intervir e impedir ações presidenciais que considerem ilegais ou inconstitucionais, mas isso acontecerá mais adiante no processo judicial. Enquanto isso, os presidentes terão mais espaço para agir", diz Zurcher.
Também marca uma vitória significativa para o governo Trump, que teve alguns de seus esforços políticos frustrados por liminares que impuseram restrições nacionais.
"A decisão quase certamente terá impacto, com o presidente agora se sentindo mais confiante de que as ordens executivas assinadas na Casa Branca podem ser aplicadas na prática sem serem impedidas por esse tipo de liminares", escreve Bernd Debusmann Jr., repórter da BBC News na Casa Branca.
Gary O'Donoghue, correspondente-chefe da BBC na América do Norte, ressalta que, embora as liminares não estejam sendo totalmente proibidas, seu escopo está sendo significativamente limitado.
"Será mais difícil para indivíduos e grupos impedir que políticas controversas, como o fim da cidadania por nascimento, sejam aplicadas", diz o jornalista.
"No entanto, é importante ressaltar que as contestações a essas políticas continuarão nos tribunais, potencialmente até a Suprema Corte, e o mérito ou a constitucionalidade de cada caso é uma questão distinta do que foi decidido hoje", prossegue.
"Na verdade, esta é uma questão da qual governos de ambas as tendências têm se queixado, então espere que os republicanos vejam isso como uma faca de dois gumes. Quando e se um democrata entrar na Casa Branca, ele desfrutará das mesmas vantagens legais que Donald Trump agora aproveita. Também haverá muito mais trabalho para os advogados – e quem não é a favor disso?"

Que outros temas serão afetados pela decisão?
Embora a eliminação da cidadania automática para filhos de imigrantes nascidos em solo americano esteja no centro deste caso, há uma série de outras ações tomadas por Trump nos últimos meses que também foram suspensas por juízes de instância inferior.
Da posse de Trump até 29 de abril, o Serviço de Pesquisa do Congresso contabilizou 25 casos semelhantes.
Após a decisão do tribunal na sexta-feira, Trump disse a jornalistas: "Agora podemos entrar com o processo corretamente para prosseguir com as políticas que foram indevidamente proibidas".
Tribunais inferiores bloquearam os cortes do presidente na assistência externa, programas de diversidade e outras agências governamentais, limitaram sua capacidade de demitir funcionários do governo, suspenderam outras reformas imigratórias e suspenderam mudanças nos processos eleitorais emitidas pela Casa Branca.
Com a decisão da Suprema Corte, o governo está em uma posição muito mais forte para pedir aos tribunais que lhe permitam levar adiante muitos desses esforços.
Durante a presidência de Biden, juízes conservadores impediram os democratas de promulgar novas regulamentações ambientais, oferecendo perdão de empréstimos estudantis e modificando as regras de imigração.
Os tribunais também bloquearam mudanças no status imigratório normalizado para alguns migrantes sem documentos durante a presidência de Barack Obama, e o impediram de tornar mais funcionários administrativos elegíveis para pagamento de horas extras.
Em todos esses casos, os tribunais puderam intervir e impedir ações presidenciais que consideravam ilegais ou inconstitucionais.
Como o direito de cidadania por nascimento começou?
Os Estados Unidos são um dos cerca de 30 países que praticam o "jus soli" automático, ou "direito do solo", sem restrições em quase todos os casos.
Outros países, como o Reino Unido e a Austrália, permitem uma versão modificada, na qual a cidadania é concedida automaticamente se um dos pais for cidadão ou residente permanente.
A cidadania por nascimento é garantida pela 14ª Emenda da Constituição, que foi adotada em 1868, após o fim da Guerra Civil.
A 13ª Emenda aboliu a escravidão em 1865. Já a 14ª resolveu a questão da cidadania de ex-escravizados libertos nascidos nos Estados Unidos.
Decisões anteriores da Suprema Corte, como Dred Scott vs Sandford em 1857, decidiram que os afro-americanos nunca poderiam ser cidadãos dos Estados Unidos. A 14ª Emenda anulou isso.
Em 1898, a Suprema Corte americana afirmou que a cidadania por direito de nascença se aplica aos filhos de imigrantes no caso de Wong Kim Ark vs Estados Unidos.
Wong, de 24 anos, era filho de imigrantes chineses que nasceu nos Estados Unidos, mas teve a entrada negada no país quando retornou de uma visita à China.

Wong argumentou com sucesso que, por ter nascido nos Estados Unidos, o status de imigração de seus pais não afetou a aplicação da 14ª Emenda.
Os críticos a essa interpretação histórica da Suprema Corte argumentam que a política é um "grande ímã para imigração ilegal", e que encoraja mulheres grávidas sem documentos a cruzar a fronteira para dar à luz.
Já os que defendem esse direito argumentam que ele faz parte da construção do país, formado por imigrantes desde sua fundação — e, por isso, está previsto na Constituição do país.
De acordo com o centro de pesquisas Pew, em 2022, o último ano em que os dados estão disponíveis, há 1,2 milhão de cidadãos americanos nascidos de pais imigrantes não autorizados.
Em essência, a Suprema Corte abriu com sua decisão caminho para que o governo Trump não conceda mais cidadania automática a todos os nascidos em solo americano, ao menos por enquanto.
A Procuradora-Geral do Estado de Nova York, Letitia James, descreveu a decisão da Suprema Corte como "um profundo e decepcionante revés para as famílias que agora enfrentam tremenda incerteza e perigo, para os milhões de pessoas que dependem dos tribunais para proteger seus direitos constitucionais e para o Estado de Direito fundamental".
Nova York estava entre os 19 Estados que aderiram à ação contra o decreto do governo Trump.
"Toda criança nascida em solo americano é cidadã deste país, independentemente do estado em que nasceu. Esta tem sido a lei do país por mais de um século", disse James.
"Isso não acabou. Embora eu esteja confiante de que nosso caso em defesa da cidadania por direito de nascença prevalecerá, meu coração se parte pelas famílias cujas vidas podem ser afetadas pela incerteza desta decisão."
(bbc)