O MEU SÃO JOÃO
Uma fogueira, solitária, crepitava naquela rua da Zona Leste de Porto Velho. Sentados frente à casa, a família conversava. Crianças corriam na rua ouvindo gritos das mães: olha o carro! Sai da rua!
Fazia minha caminhada da boca da noite quando vi essas cenas. Me dei conta que era noite de Santo Antônio, tempo de festas juninas. Meu cérebro me despachou para uma viagem ao passado.
Numa conversa fortuita com a jovem caixa de supermercado, naquela mesma noite, que usava camisa xadrez e maria Chiquinha no cabelo em alusão às festas do calendário, o tema voltou à tona. E descobrir que algumas coisas não se perderam totalmente. Ela viveu coisas que eu vivi cinquenta anos depois de mim.
Na minha viagem de volta ao passado, cheguei no terreiro da casa do meu avô Abdon e da minha avó Salomé, lá no Jenipapo, pequeno povoado perdido nas fímbrias das selvas amazônicas, próximo da morada dos tapuios.
Ví, com a nitidez de olho de menino, os tropeiros contando, às gargalhadas, seus causos e raspando, com facas curtas, os pelos e fezes dos animais grudados pelo suor nos forros das selas, das cangalhas e dos rabichos, secos pelo sol de depois da quebrada da tarde, enquanto as tropas já pastavam nas ‘soltas’ – mangueiros de capim abundante, verdinhos, macios e coçerentos.
Enquanto comiam uma variada janta de sustança, na boca da noite, regada a goles de cachaça, sentados em bancos compridos de uma mesa longa, cheia de gostosuras vindas do enorme fogão de lenha de várias bocas de fogo, o terreiro ganhava outro cenário: uma fogueira.
Sob a luz do fogo que alumiava todo o derredor, eu, meus sete irmãos e irmãs, inúmeros primos e primas além de amigos, brincávamos, corríamos, dávamos gargalhadas de tudo e de nada. Esconde esconde, pega pega, cantigas de roda ...’Terezinha de Jesus, deu um tombo e foi ao chão ... acudiu três cavalheiros, todos três de chapéu nas mãos ... o terceiro foi aquele a quem Tereza deu a mão’ faziam parte do nosso que fazer. Infância sem malícia, linda, pura. Éramos felizes.
Na fogueira, assávamos castanhas de caju, caroço de jaca e abóboras. As castanhas saiam em chamas queimando o azeite, eram jogadas no chão e cobertas com areia para esfriar e, depois, quebradas e descascadas. Tudo era distribuído entre todos.
Sob o fogo já modorrento da fogueira chegava a hora das compadrias. Adultos e crianças participavam da brincadeira, que virava uma coisa séria, muito séria. Tão séria que valia para a vida inteira. Um selo de amizade e de compromisso. Uma jura inquebrantável. Um nó de aço.
Assim, duas crianças ou dois adultos que se gostavam muito e queriam essa amizade para a vida inteira, pegavam, cada um, na ponta de uma vara, cruzada sob o fogo, e faziam o juramento: ‘São Pedro me disse, São João confirmou, que tu és meu compadre porque Jesus Cristo mandou’. Um aperto de mão e um abraço. Pronto. Estava firmado um liame que tinha a força do sangue que corria nas veias de cada um.
Desse modo se consolidavam amizades de infância que se protegiam e se ajudavam por toda a vida. Do mesmo jeito, no fogo, se batizava filhos. Não substituía o batismo da igreja. Mas tinha a força do verdadeiro sentimento do que é amizade pura, desinteressada, sem egoísmo. Amigos para sempre. Valores hoje tão vilipendiados.
Osmar Silva – Jornalista – Presidente da Associação da Imprensa de Rondônia-AIRON – Diretor/editor do noticiastudoaqui.com – sr.osmarsilva@gmail.com – WhatsApp 99265.0362
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